Um recado cheio de destino
“Alegria, Alegria” foi a música escolhida para abrir muito mais do que um setlist. A canção serviu para inaugurar uma narrativa meticulosa e irretocavelmente brasileira dos dois maiores nomes da música, Caetano Veloso e Maria Bethânia. Como um apaixonado, eu poderia colecionar parágrafos extensos desenvolvendo uma lista infinita de elogios aos dois irmãos e toda a banda, ao palco que saltava aos olhos e aos efeitos espetaculares de uma iluminação irretocável, mas o show foi muito mais do que isso. O show pulou do palco e se explodiu na emoção evidente de todos os milhares que entenderam a dimensão da mensagem que ecoava. Era um recado. Um anúncio histórico de bastiões da nossa música e que reverberou sagrado por um estádio lotado e atento.
E foi por Marina, Bethânia, Renata, Dolores, Suzana, Leilinha, Dedé. Foi por Rodrigo, Roberto, Caetano, Moreno, Francisco, Gilberto, João. Foi por todos os nomes, por toda gente em cima e de fora do palco. Foi uma mistura perfeita que congelou o momento e suspensos no ar, os corações se acendiam junto com as luzes dos celulares chorosos aos som de “Leãozinho”.
Um reencontro desta magnitude não acontecia desde 1978. Desta vez, foram 40 músicas em mais de duas horas de apresentação. A diferença, porém? Evidenciar o imperativo do tempo que, na minha humilde opinião, também justifica a motivação das apresentações. A voz ainda se ergue característica e potente e atingia até o último admirador, o mais distante do palco possível. Agora, o corpo exposto respeita os mandos do deus mais bonito e o respeito tácito ao trajeto primoroso desenhado por ambos ao longo de uma carreira longeva e combativa.
Reconheço não ser uma pessoa otimista e me consterna um mundo sem as vozes que ocuparam voluntariamente a minha cabeça em formação e definiram a estrutura do meu caráter. É difícil encarar um Brasil que mais aceita a conjuntura do que se renova na luta. Um Brasil que facilmente apaga a sua história. Ou pior a subverte. Isso realmente me preocupa como jornalista e como brasileiro. Do mainstream, as letras vazias e sem qualquer inteligência ou criatividade. Letras elaboradas para serem vendidas. O descartável dominando as paradas de sucesso. A mesma babação de ovo para uma indústria estadunidense e as costas viradas para um país que enfrenta convulsões e sismos avassaladores. Por isso que, de volta ao show, percebo o tom da despedida. Ambos, Caetano e Bethânia, se despedem também de um Brasil que eles acreditaram. Da construção de um país que, pelo menos, soubesse se valorizar e entoar a qualquer custo preceitos e valores democráticos.
E aos que ficaram impressionados com o fato de Caetano Veloso terminar a participação solo dele no show com “Deus Cuida de Mim”, um hino evangélico do pastor Kleber Lucas, aqui vão alguns dados. Os evangélicos somam 70 milhões de brasileiros. Segundo o último censo do IBGE, de 2000 a 2010, o número no país cresceu 61%. Mesmo o cantor sendo ateu e sem concordar com o domínio corrupto e alienante de grande parcela da alta casta que domina essas igrejas, Caetano não deixaria de cantar o Brasil. E esse também é o Brasil. Se conformista ou não, aí são outros quinhentos, mas inquestionavelmente brasileiro.
Eu chorei, eu ri, eu cantei, eu pulei, eu chorei de novo, eu gritei e gritei mais alto, eu mudei de lugar e voltei, eu bebi, eu dancei, eu beijei e abraçei a minha mãe e todos os meus amigos, eu quis voltar, eu quis de novo, eu vivi a história. E num dia chuvoso de dezembro, um reencontro acertado com tantos conhecidos. Será que é assim que se inicia uma revolução? A arte tem esse poder? Quase não dormi depois do show, minha avó disse que era esperança.
Lucas Galati
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sempre bom renovar a esperança, tão frágil nos tempos atuais…
Que xou da xuxa foi esse hein