Mariana
Eu tenho apenas uma amiga que nasceu com o humor virado como o meu. É realmente bonito ver a semelhança das nossas salivas ácidas em ação, a maneira como esvaziamos nossas glândulas de veneno em jatos certeiros na cara do que classificamos como absurdos hediondos, retrocessos inafiançáveis que deveriam estar estampados nas páginas de todos os portais de notícias ou ser tema dos principais congressos de psicologia. Infelizmente, não nos falamos todos os dias. Ela mora em San Diego, nos Estados Unidos e eu na éssepê-maravilha. Fora que a minha rotina vampiresca impede praticamente o contato com qualquer outro ser humano, independente de agenda ou horas de viagem.
É importante deixar claro que não pretendo cometer uma injustiça com o meu núcleo rígido, dos amigos queridos que realmente estão presentes em todos os momentos e que cumprem a árdua tarefa de me suportar. Pela intimidade e a evidente ligação de anos, o nosso papo segue aceso e imprevisível, mas já bastante atormentado por entradas esporádicas no Instagram e bocejos que, infelizmente, me desanimam cirurgicamente. E faz parte. Temos 30 e poucos anos e todos estamos exaustos. Trabalhamos mais horas, nos dobramos em três empregos, viramos a noite e todos estão muito longe de ganhar perto do justo.
Sexta-feira chega e é sempre uma roleta-russa. Quem foi atingido hoje? Gripe ou cansaço? Quem aumentou o remédio? Quem precisou mais de endorfina? Vitamina D? Amoxicilina? Os que ainda aguentam um encontro presencial terminam caindo pelas tabelas, arrotando cerveja e amendoim, repetindo os mesmos dilemas e insatisfações e tentando fingir, na volta, alguma sobriedade ao motorista do Uber. No dia seguinte, eu ainda acordo com a ira acesa no meio do peito. Uma revolta embriagada e a ansiedade dando um abraço serpenteado, esmagando a minha coluna e todos os meus órgãos em ressaca.
E eu não posso negar. Não tem como mentir a felicidade apaixonada em ter uma outra pessoa no mundo que caminha sob um prisma tão parecido. E que, com taças de vinho ou goles de água, se revolta e se indigna por motivos que passam despercebidos ou incólumes aos olhos de tantos. Alguém que também olha pro mercado e tem vontade de jogar uma bomba atômica e adivinhar quais seriam as primeiras linhas de uma verdadeira revolução. Que se permite saborear o desejo de apertar um botão invisível e se implodir nas primeiras frases motivacionais do chefe branco e rico. Que se aventura no “LinkeDisney” com lágrimas nos olhos. Que não suporta mais a breguice que rege também a arte, o mundo das celebridades, as peças de publicidade. Que não quer exposições em 3D e ainda se endivida para poder vivenciar o mergulho numa cidade totalmente desconhecida. Que já arremessou em ápices de raiva o celular na parede e prometeu viver só com um endereço de e-mail. Que não quer diálogos com pessoas vazias, sentimentalmente irresponsáveis ou automatizadas. Alguém que também não encontra o formato desejado do copo para abocanhar esse amor pós-moderno e líquido dos aplicativos. Que defende a construção de livrarias e sente orgulho da própria biblioteca. Alguém que se satisfaz em driblar ou até mesmo arremessar os ponteiros pela janela para saborear apenas uma conversa sem hora para acabar. Sem um ponto final
Lucas Galati
Ilustração: Aitor Saraiba
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