FLECHA
Em Minsk, dentro de um apartamento, um homem desiste de brigar com o anjo da insônia e levanta-se da cama a meio da noite. É janeiro e por isso neva. Para não acordar mais ninguém na casa o homem acende na sala apenas uma luz de presença. Isso permite-lhe ver pela janela os lampiões de rua e as rajadas de gelo que, diagonais, passam raspando nas lâmpadas. Para lá das linhas brancas e das luzes amarelas, um outro homem acende um candeeiro no apartamento do outro lado da rua. Verticais, ambos de pijama listrado, os dois homens ficam frente a frente, cada um encostado à sua janela. Dentro da noite escura. Não sabem o nome um do outro, nem nunca se viram antes. Mas naquela hora solitária eles são parceiros íntimos e sabem-no. Por trás de um vento de neve, um deles acena. O outro acena-lhe de volta.
(Flecha - Matilde Campilho)
Quantas vezes você já quis desidratar a extensão de uma irrealidade? Ou adicionar doses desmedidas de tempero até envenenar os meios das nervuras mais internas? Não minta! Somente aos côncavos da cabeça, parcelas do todo indizível. Os cantos escusos que protegeriam voltaicos o absurdo impronunciável. E talvez, de maneira semelhante — pelo gosto intragável ou um cozimento exagerado — mas diga-me: qual já foi o seu preço? Como se apaga uma história inventada de amor? Ou como se cortam as sílabas saborosas de um sonoro nome próprio?
Marco desacelerava. Era um funcionamento costumeiro e evidentemente inexplicável. As altas velocidades o amoleciam por inteiro. A primeira vez percebeu no metrô. O vagão irrompia sem pedir nenhuma licença e Marco quase se deixou cair ainda na porta de entrada. Nem sempre sono, mas um estado de descanso sísmico e inesperado, um relaxamento absoluto de todas as vírgulas do seu corpo esguio. Se via obrigado a segurar por canos e alças para se manter ainda equilibrado frente às imprevisibilidades dos trilhos excitados.
E já rabiscou teorias. Algumas mais preocupantes do que outras. Porém nem mesmo a sua lista hipocondríaca de possíveis doenças crônicas dava conta dos sintomas observados. O relaxamento também acontecia em viagens de carro. Não na mesma intensidade, já que os semáforos e o trânsito da metrópole impediam uma aceleração significativa, mas quando o motorista deslizava em rodovias desimpedidas, Marco era o primeiro a anunciar o seu sono indiscutivelmente profundo.
Carlos pegava outra linha do metrô, praticamente do lado oposto da cidade. Era pacífico em praticamente todos os termos. Apesar do trabalho estressante, sabia se manter estável e participativo, sem precisar ser alvo dos conselhos dos chefes sedentos por mais poder ou promoções injustificadas. Tinha um repertório invejável de relacionamentos saudáveis e um conhecimento saboroso pela sétima arte. Detestava contar estrelas e qualquer tipo de religião lhe dava crises de bocejo. Uma praticidade indiscutível, mas que se aplicava ao contingente de oxigênio que dominava a rotina na superfície. Carlos se transformava debaixo da terra.
Minutos antes de se aventurar pelas catracas do metrô, o coração ganhava um embalo inusitado, uma frequência não somente mais acelerada, mas distinta, estranhamente desordenada. As mãos já seguiam para o meio do peito ou com apenas dois dedos em riste monitorava as batidas cardíacas pelo lado do pescoço medroso e suado.
Ao passar a catraca, conversava com um suposto deus católico e impiedoso. O sinal da cruz era feito a cada 2 minutos e as pernas conquistavam um ritmo quase olímpico durante o trajeto assombrado até a demarcação no chão, em amarelo, onde ele finalmente subiria e, de olhos fechados, iniciaria a sua dificultosa travessia.
Era maior do que medo, pavor ou ojeriza. Era uma inaptidão. Repetia que não gostava de se sentir tatu, minhoca. Que homem algum foi feito para caminhar debaixo da terra. Aos amigos, justificava com histórias horripilantes de atentados terroristas e abalos tectônicos mortais. Sabia elencar cada tragédia e o número total de vítimas em cada uma delas. As mãos doíam tamanha a força que Carlos fazia para se manter indiscutivelmente equilibrado pelos mesmos trilhos de outrora.
No dia 14 de outubro de 2003, Marco deixou o escritório mais cedo para uma consulta com uma dermatologista do outro lado da cidade.
Nesse mesmo dia, por volta das 14h00, Carlos precisava se despedir de um amigo que tinha decidido partir para um país vizinho o quanto antes. O amigo morava perto, mas para não se atrasar, preferiu usar o metrô.
Marco procurava um livro na bolsa, como uma tentativa de se manter acordado, quando o vagão decidisse seguir o seu rumo. Carlos corria para tentar se desprender do medo e também para pegar o mesmo vagão que esperava conscientemente um tempo pré-determinado para a entrada de passageiros. Trotava tentando se desvencilhar dos obstáculos vivos e soltava mais ar pela boca do que pelo nariz, afinal tinha que operar o septo, mas morria de medo do pós-cirúrgico.
E então Marco investigava todos os itens que adormeciam na sua mochila de uso diário, quando foi atropelado por uma força inominável e levado ao chão, antes que tentasse qualquer defesa. Caiu e bateu a cabeça em três lugares diferentes. O livro recém-encontrado foi arremessado para longe.
Quando conseguiu abrir um dos seus olhos, um jovem de cabelo moreno, talvez da sua idade, repousava a cabeça no seu tronco aberto. Carlos hoje assume que preferiu escutar as batidas agitadas daquele outro coração, antes de começar a pedir sinceras desculpas.
Os dois corpos se reconfigurariam logo mais em ritmos parecidos. O metrô não esperou para seguir o seu percurso frenético numa viagem incomum. Afinal, nada mais se movia.
Lucas Galati
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e qual será a próxima estação?