STALKER
E eu não esperaria boas-vindas ajoelhado na areia da praia que me apresentou a primeira sequela do futuro e nem puxaria os fiapos de um mato seco e enfrentaria um jogo de adivinha moroso e parcial. Há tempos que eu escrevo crônicas estáticas sobre carros em movimento. Ontem, eu desisti de atravessar a rua de olhos fechados e roubei a única flor aberta de um arbusto no auge do seu retiro outonal. E não há duvidas de que eu espremi a visão atenta e esperei o aviso caloroso vindo do outro hemisfério de um viaduto conhecido pelos desencontros. E eu fui dar um passeio na linha de metrô que desemboca na sua casa e deixei em algum poste uma pista da minha impermanência. Uma pista que só você saberia decifrar.
Eu parei de contar as janelas de prédios acesos. Consegui deixar de lado a memória da cor viva do pôr do sol que cronometrou a nossa despedida. E eu apelidei a joaninha que vive nos cantos escuros da casa e libertei músicas proibidas até o fim de um vela grossa. Poucos sabem da covardia da sua pressa. Como dizia? Passado, presente e futuro. Aceita o convite? Você que disse. E dessa maneira, quase assim:
“A rota turbulenta para os meios do meu abismo”.
E eu não contei do meu pulo por vergonha. Não contei por duvidar da funcionalidade da minha razão. Afinal, sou ou estou falho. Inconsistente, no mínimo. Não sei ao certo. Degustei pomposamente as migalhas carnívoras das suas mentiras e o vinho tem a culpa em reacender o tesão. A uva dionisíaca do bistrô que eu te chamei tantas vezes. A burrata que eu deixei esfriar para esperar a sua ausência. O último pedaço de pão italiano que me desceu sufocado.
E eu não esperaria mais nada. Por algumas semanas, abria distraidamente livros velhos de poesia. Uma frase. Uma estrofe. Uma nova direção? Quase apostei que o Google saberia apresentar uma solução para um problema que nem nome tinha. A incredulidade presa numa amargura sem qualquer sentido explícito. Sem motivo aparente. Uma disfunção resultante exclusivamente da experiência não vivida. Talvez por isso? O gole venenoso da ilusão. Talvez. E eu abria a aba da última conversa virtual e esperava oscilações, marolas ou que um fio solto de pensamento meu pudesse saborear da tua frequência e provocar uma onda de ânimo e de coragem. E dali em diante, tudo seguiria por outras veredas. Caminhos bem menos sólidos e sorrisos abertos com gosto de verdade. Só que um minuto virou dez. E depois, mais vinte. Algumas horas se seguiram num abrir e fechar de abas e, poucos dias depois, uma noite de insônia ensopou o travesseiro. O alerta constante. Um exercício necessário para enfrentar a abstinência. De você?
Lembro então do horário. Um dia ou dois da noite em que eu roubei a Lua e vaguei boquiaberto pela casa soturna.
5:32
Abro a mesma aba. Só que juro, em sigilo, ser pela última vez. E percebo uma discreta, mas convincente alteração nos mecanismos internos que mantinham o celular carregado e aceso:
XXX está digitando…
Lucas Galati
Ilustração: Adolfo Serra
Este texto nasceu após eu conseguir saborear atentamente e repetidamente a beleza inenarrável do CAJU, último álbum da cantora Liniker. Principalmente de uma canção de nome VELUDO MARROM, que coloco aqui embaixo como sugestão para vocês:
✍️ A newsletter dos Andantes tem o modelo gratuito e o modelo pago. É importante destacar que no modelo pago, você vai contar com dicas bacanas das mais diferentes ordens e para todos os estilos, mas que ainda o que é o mais valioso, para o presente autor, é o texto em si. Seja a poesia, a crônica, o conto… A principal preocupação será sempre a construção textual e literária. Costumo enviar uma nova edição da newsletter de 5 em 5 dias. Não deixa de arriscar os seus passos nessa andança!
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👀E se quiser me acompanhar nas redes virtuais:
tudo fica tão mais lindo na voz de liniker…