Há alguns bons anos, uma amiga monstruosamente especializada em Matemática pela USP e adicta em construir engenhosos mapas astrais decidiu, entre uma taça e outra de vinho, pedir os meus dados e traçar um esboço com o intuito de entender melhor essa cuca sagitariana. Eu descobri muitas coisas naquele dia. Descobri que tenho a minha Lua em Leão, o meu ascendente que eu sempre achei ser em Sagitário, assim como o meu signo é, na verdade, em Capricórnio e que eu tenho Netuno na casa 1, o que, na prática, explica o meu apego em precisar sempre mergulhar nas profundezas dos meus ribeirões de merda, chafurdar pelo esgoto da minha inconsciência por meses para só então encontrar um caminho possível e finalmente me desprender do questionamento diabólico em questão.
Com mais algumas taças, ela, que já tinha me surpreendido em todas as minhas jovens constelações, me deixou estupefato ao anunciar um conselho de maneira insistente e categórica:
Você deve sempre estar perto da água!
Eu dei uma risada envergonhada e terminei, num gole só, o conteúdo da minha taça já bêbada. Não sei se eu tinha maturidade para absorver a imensidão da sentença. Afinal, eu nunca fui um jovem insano e nem rebelde, mas não caminhei sempre pela luz. Na época desse encontro zodíaco, eu começava a me relacionar, pela primeira vez, com um homem. Eu estava violentamente apaixonado e assumo que precisei da bebida para suavizar eletricidades que, muitas vezes, domavam a minha cabeça involuntariamente. Acho que mais do que isso. Antes de me envolver nessa relação, eu já perambulava por corredores escuros e dezenas de baladas tristes. O mundo era bem diferente, meu jovem leitor homossexual. Os aplicativos não existiam, o celular não era um computador. Sendo assim, nós, gays, que ainda somos, muitas vezes, obrigados a ter os nossos afetos e amores explorados em guetos e saunas, vivíamos numa roleta-russa em busca de um possível encontro de olhar. Tínhamos que treinar cantadas e aprender sobre o sexo, na prática, já que o mundo nunca nos deu referências. Éramos bombardeados por versões estereotipadas, muita pluma e quilômetros de distância de como a homossexualidade se dava na vida real. De como o amor realmente sobrevivia mesmo em meio aos insultos, preconceitos e violências diárias.
E, claro, que se assumir gay é um RESET extremamente interessante na vida, mas ele, infelizmente, não suaviza as dúvidas, as amarguras, as exclusões e os tantos outros desafios e nem como cada um vai lidar com essa nova epiderme, ainda em delicada construção. Por aqui, não foi perto da água, definitivamente. Muita, mas muita birita, vieram também as drogas e incertezas asfixiantes que, graças a uma mãe atenta e alguma condição financeira, pude dividir com terapeutas especializados. Digo, com absoluta certeza, que, sem a ajuda da terapia, eu não estaria mais aqui.
Hoje, depois de muitas quedas e desenganos. Hoje, depois de muitos amores reais ou ficcionais. Hoje, com orgulho do homem que eu me tornei. Hoje, com a clareza de que lutei e ainda luto o tempo inteiro. Hoje, com a felicidade de ver homens de mãos dadas na rua e se beijando apaixonados em bares de Sampa. Hoje, sabendo que meninos e meninas queer cultivam referências mais próximas e não perpetuam a mentira de um enredo sempre fatalista. Hoje, atento de que o caminho é longo e que algumas letras ainda são escanteadas ou simplesmente apagadas nesse arco-íris. Hoje, consciente dos índices absurdos de mortes de homens e mulheres trans que fazem do Brasil um país assassino. Hoje, com a armadura vestida para enfrentar as canetadas cheias de veneno do presidente eleito da maior economia mundial.
Hoje, a água me abastece com mais facilidade.
E não apenas nos goles gelados, mas em se sentir aquático e liquefeito num universo tão pequeno e tão particular. Há quem procure as artimanhas dos mágicos ou há quem diga que o sobrenatural não existe, sinto por esses. Basta encher um copo de água e admirar por 30 minutos. É um copo de vida. O líquido que brota. Um verdadeiro elixir.
Não quero cair num discurso holístico. Eu nem teria esse conhecimento. É que o ser humano está sempre atrás do fantástico e o que pode soar tão banal e cotidiano, não deixa de estar ensopado de magia. Eu realmente fico feliz de ter me dado tempo, de ter conseguido esperar o amadurecimento, de me ver também como um sobrevivente deste país tão truculento. De ter dado voltas e caído muitas vezes, mas poder hoje aproveitar toda a água que eu enxergo. Toda água que mora em mim.
Lucas Galati
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Que texto bonito, Lucas!
Realmente, outros tempos. Tempos mais difíceis! E que bom que você contornou todos os obstáculos feito ÁGUA ✨ fez todo sentido!
não é fácil ser água neste deserto de ideias em que estamos vivendo, mas a fluidez ajuda a encontrar um caminho possível.