Estás vivo?
Vendo alface crespa, gelo seco, chuteira assinada e textos escritos que não vão te levar a lugar algum. Afinal, reflexão densa com o caderno aberto e lápis apontado ou mergulhos profundos abaixo do salgado da epiderme são admirados somente na forma de desenhos rupestres neste mundão liquefeito e cheio de marra.
Talvez eu seja um pessimista sem solução. Niilista em fase de pulpa. Uma chateação crônica que veio comigo desde o berço e mais me assombra do que suaviza a inconstância da caminhada. E eu erro no agudo e escancaro a falsidade da minha risada quando ouço a décima piada de mau gosto ou vejo a crença leviana nos olhos, quer dizer, no post pomposo repostado em letras garrafais daquele jovem que martela o justo discurso SEM ANISTIA aos terroristas envolvidos na invasão e depredação às sedes do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal no dia 8 de janeiro de 2023, mas se esquece que ele vive no país, onde as placas por intervenção militar são levantadas, onde o desgoverno de um fascista produziu mais de 700 mil mortes, onde as pessoas já se explodem em prol de um ideal reacionário e onde nenhum torturador foi devidamente punido pelo envolvimento nos horrores da Ditadura Militar.
Ontem, eu me permiti gastar quase 50 reais para assistir no Cine Marquise ao aclamado “Ainda Estou Aqui”, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva. Em linhas gerais, tanto o livro quanto o filme falam do desaparecimento do pai do escritor durante o período ditatorial brasileiro, o engenheiro civil e ex-político Rubens Paiva. É mais uma obra-prima de Walter Salles. Um espetáculo de atuação de Fernanda Torres. Um roteiro primoroso e, para a minha surpresa, absurdamente documental. Exímia direção de arte, a construção dos cenários é impecável. Uma película magistral que merece todo o frenesi que está recebendo e que tem lotado os cinemas num momento mais do que oportuno.
Desde o colegial, quando ainda confabulava sobre o meu futuro profissional, eu já reconhecia a minha total predileção pela área das Humanas e, principalmente, cultivava a História como uma das minhas matérias favoritas. Mal eu sabia o quanto eu seria mais feliz se tivesse respeitado as minhas fortes intuições meninas, mas isso não importa agora. Já nos corredores frios da escola, eu que escondia tantos medos por trás dos livros de estudo acabava exagerando no empenho e esculpindo um repertório extenso nos meus assuntos preferidos, tirando conclusões complexas — e jamais expostas — e que se fundamentam até hoje. O Brasil é um país que facilmente se apaga. Talvez pela falta de monumentos que, estáticos, relembrariam os horrores vividos em décadas passadas. Talvez pela falta de punição aos torturadores que é também tema do filme de Salles. Talvez pela falta de uma sociedade democrática e, aqui, me permito bebericar argumentos da filósofa Marilena Chauí que sustenta que instituições democráticas não são suficientes para manterem vivos os princípios democráticos. É essencial existir também uma sociedade que defenda e exalte a democracia. Todos os dias.
Seguiria elencando mais duas ou três razões para esse apagamento verde e amarelo, adicionaria ao molho a famosa pitada de que o fascismo é uma cadela que está sempre no cio e da mistura se cozinha o ensopado assustador que provamos hoje. O que impede a mentira? O que impossibilita a divulgação das fake news? O que faz com que a história não seja distorcida, inventada, apagada? Está comprovado que as redes sociais podem ser excelentes mecanismos democráticos, mas é só piscar os olhos e focar no outro gume que elas também erguem e sustentam um sistema ágil e venenoso de propagação de inverdades. É o jornalismo que deve cumprir a checagem da verdade? Recuperar os idos da história? Ou essa é a profissão que deve ir atrás do furo, correr em busca da saudosa reportagem?
Sendo ou não um devoto do estilo Carpe Diem ou do Lexotan para os mais íntimos, afirmo que qualquer ser humano que ainda se permite ouvir as batidas do coração deve sair do cinema com uma raiva vermelha e um desejo de se filiar a algum partido revolucionário já na semana que vem. Ah! E claro! Não podemos deixar de lado, por exemplo, a quantidade de milicos que já estiveram ou estão no governo neste momento, que a Polícia Militar sob o comando de Derrite, em São Paulo, deixa estampado um legado de sangue e carnificina nunca antes visto e que os crimes cometidos e todos os absurdos vivenciados nos quatro anos daquele-que-não-deve-ser-nomeado permanecem sem qualquer punição.
Mas juro que vou terminar com gotinhas de esperança. Não menos vermelhas:
30 DE OUTUBRO
Os cães pararam de latir,
ladraram até a exaustão,
e as canetas recarregadas
de tinta
humana
caíram vazias
na lixeira da história.
Escreve,
agora,
o povo.
Um abecedário vermelho,
a cor que tinge o cerne
da árvore
que deu nome
a uma nação inteira.
(poema do meu livro: VERDE, VERMELHO E CINZA)
Lucas Galati
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Ótimo texto.
Mas beem triste tudo isso, dá um peso da luta que talvez a gente não suporte lutar.
Adorei, triste mas claro! Agradecemos a chacoalhada pra seguirmos sempre atentos e sensíveis.