DESINIBIDA
E ela se perdia ainda. Ela com ela. Não tinha sido fácil. Mesmo num fevereiro beijado por intenções assopradas e arestas de todos os tamanhos. Mesmo tendo sido escaldante, um azul de tonalidade tropical abafado no céu nos dias de folia. E até anotou alguns nomes, outros esqueceu sem qualquer amargor ou peso na consciência. E não deixava evidente o tal ponto almejado de mudança. Talvez, não soubesse ainda, com precisão cirúrgica, quando o líquido realmente se transformaria em gás, mesmo sob as mais altas temperaturas. E o gás se faz também nocivo, mas já não se vê na esquina seguinte. Não circula de mãos dadas pelo bairro e nem reaparece inesperadamente com pedidos de café ou cerveja, almejando cumprimentos lunáticos e cuspindo para o passado, um buquê intragável de presente.
De um livro, retirou parte de uma poesia e não quis estabelecer analogias e nem dividir com a melhor amiga, que tinha casado há poucos meses. Numa tarde, ainda em fevereiro, refletiu sobre alianças e o medo que deve adormecer nessa circunferência de muitos quilates, famosa no mundo inteiro. E o medo era, para ela, sinônimo de paralisia, uma gama de sintomas imediatos que a acompanhariam por meses ou anos. O medo cru era escandaloso, perverso, impunha uma batalha sanguinolenta que ora rompia, ora lustrava o anel de ouro. E o fato de estar sem paciência e não mais assombrada de meninice, costurava um conjunto reforçado que servia de escudo, quando percebia a inutilidade de um segundo travesseiro. Não tinha mais o choro como companheiro. Apenas uma leve tontura, quando se percebia fora de foco, estupidamente descontrolada. Não gostava desse estado e era assim que se fechava redobrada
por dentro.
Mas alguma palavra se encantava com a luz e, imprudente, atraía outras tantas. Logo, um enxame tomava o quarto. Três ligações verborrágicas, velas acesas e magias inventadas e na cozinha, uma garrafa finalizada de um vinho duvidoso: o canto solitário de um animal ferido, uivo que percorreria uma ou dez madrugadas.
Demorou para evitar o maniqueísmo prático e as outras pontas extremadas do seu humor ondular. Demorou também para rastrear os comportamentos de repetição e uma ingenuidade assombrada. Um problema arrastado. Acreditava, era isso. Acreditava nas pessoas e as mentiras eram facilmente apagadas. Valia a magnitude do enredo, a complexidade da história, o nível de dedicação demandada. Era realmente uma mulher inteira. Não se procurava refletida. Não confiava em projeções e não esperava nada das telas. Não era da sua natureza, da sua geração. Ela só queria confiar nos giros e ainda que, perdida, tinha os princípios maternos e os seus. Dependia somente de um ângulo favorável; de um dia, provavelmente, ímpar para sair de casa apaixonada…por ela.
E rebolava o quadril, ajeitava a bolsa, enquanto o cabelo liso se dissolvia no vento. Quando se via linda, era visceralmente valente. Enfrentava a existência em passadas ritmadas e aceitava os olhares de quem quisesse olhar. De quem deveria olhar um ser humano daqueles. A silhueta da musa, em breve, se despediria, mas não importava. Ela esteve ali. Por minutos. Horas, quem sabe? Foi percebida. Foi inaugurada. Recebeu a devida importância. Ela finalmente se reconhecia. Liquefeita E gasosa, mas também sabendo marcar a passada do que ela realmente era. Do que não poderia ser entendido de outra forma. Do que perduraria.
Como uma boa roda de samba.
Lucas Galati
Ilustração: Tulipa Ruiz
❗OUTRAS EDIÇÕES:
✍️ A newsletter dos Andantes tem o modelo gratuito e o modelo pago. É importante destacar que no modelo pago, você vai contar com textos mais complexos e aprofundados sobre um determinado tema, dicas interessantes das mais diferentes ordens e para todos os estilos. Porém, o que é ainda o mais valioso para o presente autor é o texto em si. Seja a poesia, a crítica, a crônica, o conto…
A principal preocupação será sempre com uma construção textual criativa e inesperada. Costumo enviar uma nova edição da newsletter de 5 em 5 dias. Não deixe de arriscar os seus primeiros passos!
😜Só para lembrar que você pode adquirir o meu livro AQUI!
👀E se quiser me acompanhar nas redes virtuais:
reconhecer-se é fundamental.