Camadas
A preocupação que tira o meu sono e eu acordo anoitecido e rondo feito uma cadela triste e faminta. Rondo pelos quarteirões de cimento gasto e conto os ladrilhos das vielas que também amolecem o meu quadril equilibrista. Eu rondo e se danço é a forma de verter algum ritmo cinematográfico e pular poças pelo caminho citadino; assoviar, talvez, uma canção antiga num bueiro escuso e reparar até onde o sonido se sustenta.
Desengonçado, se me aproximo afoito aos aquedutos que servem apenas para piscar riachos ou cachoeiras monumentais. Minhas águas já afundam em gostos esquisitos. Ácidas, tóxicas, barbitúricas. Poucos sabem, mas quando me recolho detento. Quando atento, estranho a minha estrutura e o movimento frenético do meu pé, alguma voz nasce da alvorada e eu deito em mim e aceito a humanidade de que tanto fujo. Tantas rotas de escape e as raízes que desfalecem puídas antes do primeiro gole freático. Desértico, o meu engano. Monta e remonta, invencível como a primeira crença, a mais infantil sabedoria de que o amor resistiria. De que apenas por ele e para ele, eu desenharia uma justificativa virulenta e seguiria infectado até o próximo capítulo e o outro e mais um.
Não peço mais nada. Afinal, o meu último deus adormeceu numa carta escrita para esperar a chuva comer. A embarcação que, uma vez te prometi, partiu, há pouco, para terras mais quentes, onde as baleias ainda exploram motivos e se multiplicam entre correntes marítimas e esguichos jurássicos. Eu tenho tanto a dizer sobre as observações erguidas hermeticamente de um horizonte cruel e embriagado, mas as revelo para os azulejos brancos do meu banheiro asfixiado. E a transformação só existe, se o amor revive o fluxo de veias encardidas? As novas manias e os cacoetes se instalarão no estrear do seu próximo: “eu te amo”? A vida se mantém exclusivamente como uma resposta ao amor?
Quero, portanto, ajoelhar e implorar pelo sossego das mais intempestivas liberdades. E todas elas, digo todas, se estenderem reunidas no reflexo exibido dos meus tendões, da minha barriga não trincada, das minhas olheiras e costas arqueadas. De que tais liberdades se envolverão prazerosas nos parágrafos de vidro da minha partitura. Particular. Una. Sensível. E se a Terra estremecer tectônica, se uma abelha beijar da planta mais doce do mundo, se duas línguas encontrarem uma cadência própria e apostarem na mesma verdade, que eu consiga escapar nas noites acesas pela Lua ladina e me perder na mesma ronda solitária, mas com a cidade ensopada de esperança.
Lucas Galati
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e que a esperança seja a última a morrer, como diz o ditado.
Pura poesia!