Acém ou cupim?
Jorge estava doente. Como há muito não se sentia. Uma gripe que cozinhou desde o começo da semana e que decidiu revelar toda a sua ousadia e potência só na sexta-feira. Não condenou os motivos do seu corpo. Aos quase 40 anos de idade, já não tinha apego, paciência e nem dinheiro para os fantasiosos divertimentos que um final de semana supostamente deveria reservar. Também não tinha muito saco para casais apaixonados ou madrugadas em boates sufocantes. Há muito tempo, lembrava do amor quando se permitia passar uma hora e pouco no aplicativo, decidindo se ele preferia acém ou cupim. Uma seleção encantadora de muques batalhados e abdomens trincados que ele rapidamente descartava, afinal a sua predileção pelo boteco da esquina e a sua barriga existente não sustentariam qualquer conexão virtual com um deus do Olimpo empenhado na construção de um corpo centáurico.
Um final de ano bem difícil. Uma bandeja carregada de sintomas al dente, perdas doídas de gente muito querida, a discussão semanal e assustada com a velhice e a certeza de que em todas as suas principais apostas, no que se permitiu alguma excelência, Jorge era sempre cozinhado ou passado para trás, era totalmente desconhecido, era esclarecidamente ultrajado. Era uma fase. Estava de saco cheio de si. Dos outros. Dos mesmos outros. Sabia que poderia, por exemplo, investir sorrisos em conhecer gente nova; amizades frescas, até mesmo superficiais, mas os ápices impiedosos da sua irritação não eram muito convidativos nesse momento.
Gastava o restrito tempo livre com os livros e alguns rabiscos num caderno velho e já quase sem folhas em branco. E foi pouco antes, num restaurante charmoso, bem perto de uma livraria extinta que ele decidiu assobiar todas as suas manias, as suas esquisitices insolúveis. E Gustavo, estranhamente, escutou com uma paciência atenta e um interesse genuíno. Os olhos que não mentiam. Foi assim que Jorge abriu um novo capítulo de um diário, escondido no móvel do quarto, usado para falar do que ainda o surpreendia.
Gustavo não deixou a temperatura se perder em meio as garfadas num carbonara correto e antes de um beijo calibrado, se aventurou em perguntar qual tinha sido o último? Jorge sempre teve receio de falar da poesia. Muitos se desapontavam ou entendiam o estilo com um certo desdém. Outros achavam que Jorge exagerava numa suposta performance literária e desapareciam pelo medo do mergulho. Mas com Gustavo não. Jorge estava seguro e disse ser: Na Lata, de Frederico Barbosa. Como? Gustavo perguntou. E Jorge repetiu calmamente, já cavucando os entres da bolsa em busca do livro em questão. Na Lata, de Frederico Barbosa. Conhece? Gustavo disse que não, mas pediu para Jorge fechar os olhos e abrir o livro em qualquer página.
E a poesia se abriu em seis linhas estendidas:
quantos sonhos se dissolvem
hoje
na passagem
nessa hora exata
nessa data
na contagem final
Gustavo pediu para Jorge ler em voz alta. Ele respeitou sem grandes delongas. Um pouco triste para o que só está começando, Gustavo concluiu. E Jorge sentiu uma clareza do caminho promissor e excitante que se desenhava. Quatro beijos longos selaram a noite dos dois que não avançou para outras promessas quentes e descabidas ou lençóis amanhecidos de paixão.
Quando chegou em casa, Jorge quis ligar para os amigos que já não tinha. Contar os detalhes do que havia sucedido. Contar que, talvez, a esperança se renovaria em breve. Contar dos gostos tão parecidos. De que ele também ouvia Zambujo e gostava do álbum novo da Liniker. De que Gustavo tinha uma cor favorita e que também amaria conhecer a Islândia. De que ele estava cansado da solidão e que preferia o campo para a construção de uma casa de veraneio. Jorge abriu uma cerveja e namorou o seu corpo, por alguns minutos, no espelho. Relembrou as esperas conscientes de Gustavo. A atenção absoluta em ouvir Jorge falar, comentar tônico sobre os assuntos. De como Gustavo não se preocupou com o celular durante o jantar, em mostrar memes do momento ou responder ao grupo do trabalho. E o beijo? Jorge relembrava o encaixe e a sabedoria intuitiva das línguas, uma dança ensopada e sem afobamentos. O carinho vagaroso que, involuntariamente, adormeceu alguns cachos de Gustavo entre os dedos de Jorge. E o perfume que atiçava e encorajava Jorge a voar com aquela história para frente.
No dia seguinte e como de costume, um bom dia para selar o acontecido. A resposta veio já imediata. Bom dia, gato. Tudo bem? Jorge não hesitou, respondeu na sequência, tentando questionar, com luvas de pelica, se Gustavo tinha gostado do que tinha acontecido. Também aproveitou para arriscar uma piada com o nome do restaurante e uma massa que tinha no cardápio e que foi motivo de risadas de ambos. A mensagem foi lida. Foi lida, repetia para si. Se a mensagem foi lida, custa responder? Trinta minutos depois e Jorge seguia num movimento alucinante do seu quarto até a cozinha e da cozinha até o seu quarto.
Jorge esperou uma, duas, três horas. Decidiu enviar algumas interrogações. Quem sabe ele não teria visto? Quem sabe ele não entrou no cinema e está saindo só agora? Quem sabe Gustavo não tivesse um almoço em família e ficou longe do celular? Quem sabe…
Um, dois, três dias. Jorge decidiu perguntar se estava tudo bem. Gustavo não demorou para responder e se desculpar pelo sumiço. Disse que ganhou de uma amiga uma viagem e que, depois, a rotina acabou comendo todas as forças cabíveis.
Forças cabíveis. Riu sozinho e pensou em alguma resposta inteligente. Pensou que poderia mandar uma foto de si, com uma cara de interrogação ou, quem sabe, mais uma poesia do livro de Frederico Barbosa. Alguma que explorasse a bestialidade humana, mas ser otário naquele momento era uma questão de escolha. Jorge era gato escaldado, já sabia o que tinha se dado e, por mais incrédulo, deveria encarar o azedo da verdade inquestionável.
Optou por uma mensagem sonsa e que não levaria a lugar algum:
Gus, imagino a correria. Gostei bastante de você. Se quiser outras aventuras, estamos por aí!
Jorge sabia que não teria mais respostas de Gustavo, mas, ao menos, não deixou o seu mau humor piorar. Optou por manter em sigilo o que, visivelmente, só ele acreditou ser uma possível sincronia, um afago do destino, algo que poderia se transformar numa história realmente bacana. Demorou bastante para arriscar um próximo encontro e até hoje recebe curtidas pontuais nos stories do Instagram vindas de Gustavo. Ou de quem ele achou que poderia ser aquele Gustavo. Curtidas esporádicas entre os cliques e as arrastadas de dedos usados tanto para pular stories quanto para encontrar novos pedaços de carne.
Lucas Galati
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Que delícia de escrita 🩷
e lá vai jorge ter que arriscar a sorte outra vez…