Vinho com chiclete
Ninguém é mais escravo do que aquele que se considera livre sem o ser.
Quem quer brincar, põe o dedo aqui que já vai fechar! E olha que Goethe foi embora há quase 200 anos. Comprovado está que os termos do contrato só melhoraram de lá para cá. Cláusula pétrea respeitada com afinco ao longo dos séculos: tempo de sobra para diversão, entretenimento e afins. As olheiras você não repara. Excesso de felicidade. Curtição abastecida e os ponteiros derretidos nas palmas estendidas. Um olho no negativo e o outro na negação. Acalme-se, leitor! Só me deixaram a ironia. Não sobrou mais nada por aqui. Somente um decênio para salvar o planeta da extinção e o Brasil se gaba que vai pisar no acelerador e procurar petróleo no avesso.
Esses dias, um menino interessado se irritou. Disse que eu brincava demais, que ele não sabia decifrar os meus momentos de seriedade. Eu tive que rir e decidimos esquecer dos votos e do Golden. De volta a frase de abertura, repare que fincou funda numa sessão de mais de três horas e meia no cinema perto de casa. Diversão, não lhe disse? O Brutalista, era o dito filme. Impecável, na minha humilde opinião. Dez indicações ao Oscar e um competidor e tanto na corrida para que pelo menos uma estatueta aterrisse em terras tropicais.
(Três respiradas fundas e a mordida numa maçã…)🍎
Sou jornalista e hoje, assim como metade da população terrestre, hablo mais do que escuto, mas demorei para cuspir desenvolto as palavras. Saborear distintas intenções, ainda mais os terrenos pantanosos e os gritos insones da raiva. Demorei por desconfiança, por achar que eu não tinha o devido direito, pelos tapas e chutes tomados quando resolvi dizer. Nunca tive clareza do quanto a palavra dita poderia me favorecer, do quanto ela realmente me libertava. E se escravo ou senhor, a sabedoria conquisto em insistentes arritmias e crises nervosas de existência. A escrita esconde o meu rosto na mesma proporção que me reflete. Protegido e exposto, o horizonte me encara, de longe, mas existo.
E conto, portanto, que um momento oportuno virou a chave de vez. Há muito já se deu, mas nunca mais se repetiu. Nem divago mais. Não espero. O amor me engolia inteiro na época. Era a estreia de tanta coisa. O gosto da confiança absoluta ainda não some, a cama solteira abastecida de promessas de vento e declarações absurdas, mas não quero despencar novamente em primeiros amores vividos. Era tão além, o que lhe digo. Uma reunião inesperada. Totalmente inesperada. E sem data exata para acontecer. Sem roteiro. Sem motivo explícito. O motor do encontro era a coleção de jovens inexperientes e machucados e com grave impaciência para as redes sociais, para o que não fosse real. Um grupo que se montou despretensioso e que se possibilitou espaço, uma liberdade crível e consciente das profundezas das nossas prisões, do peso das nossas algemas. Ali, foi onde eu reaprendi a dizer a palavra. Ali, ainda melhor. Naquele apartamento, a vida se desprendia ou se alongava, já não sei e eu escutava sedento o que o outro poderia me contar: um conselho, um pouso, uma nova revolta. Ali, certos e errados não eram reparados, constatados, considerados. Reconhecíamos as nossas quebras, as fendas e a madrugava se diluía faceira. Não tinha duração. Ponteiros não tinham vez. Nenhuma preferência. O cansaço que não vinha e mais um gole, mais um cigarro, um beijo em segredo ou explodido. Abraços encapsulados, lágrimas tímidas e as ressacas curadas com café e um pouco de canela. Quantos foram os tratados de eternidade que fizemos?
Infelizmente, nenhum foi cumprido. Nunca mais nos vimos. Os que restaram acabaram adaptados para novos moldes, modelos compatíveis aos cabelos brancos e as rugas ainda discretas. Encontros bem menos verborrágicos. Devidamente rasos, mornos, com bocejos e hora para acabar. E não há culpados. Veio a tecnologia que mente as proximidades e nós acreditamos. Somos escravos também dela. Mas ainda vamos marcar e o futuro tragamos como uma doce e verdadeira mentira, uma pílula para esquecer de vez, um pulo cego, um jogo irresponsável, a folia que vai suavizar o peso da fantasia que monta o passado.
😁Bom Carnaval, andantes!
Lucas Galati
foto inicial: Vivian Maier
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