Um pássaro? Um avião? Não! Uma surpresa...
Quantas vezes eu já quis voltar algumas casas e fisgar um precioso da infância. Ainda mais por apostar todas as minhas fichas, há mais de 13 anos, no instável processo terapêutico. Ainda arrisco fechar os olhos e parto por estradas quase sempre escuras e fugidias. Já implorei por um sonho esclarecedor, onde eu abriria vagarosamente a Caixa de Pandora e me divertiria com os “baby traumas”: todos ainda inócuos, protegidos em berço esplêndido e embalados por canções de ninar. Mas nada. O acesso é sempre interrompido, seja nos braços de Morfeu ou num devaneio pelos trilhos do trem.
E, por favor, não achem que eu vivi uma infância terrível. Longe disso. No entanto, o que se mantém vivo é o que me foi contado e dificilmente consigo uma projeção ou a sensação de pertencimento dos tantos episódios que recheiam este bendito período. Agora, há, sim, um! E este fio de memória não foi cortado, permanece intacto, fisgado despretensiosamente nos altos do divã. E digo mais: acredito que gerou turbulências significativas no meu verbo to be de hoje.
A minha mãe foi, como grande parte das mulheres brasileiras, uma ultra mãe. Era obrigada a se contorcer em 170 versões para dar conta de todas as obrigações impostas a uma mulher de classe média baixa. Mesmo com os inegáveis privilégios, as demandas eram pesadas. Dois filhos debaixo do braço e um marido que, basicamente, justificava a sua paternidade no pagamento atrasado das contas.
Portanto, uma forma de conseguir reunir a família inteira numa única refeição era prometer uma surpresa, se todo o conteúdo do prato fosse ingerido. Isso virou uma prática, um hábito e até um jingle foi criado para o momento da entrega. A tal surpresa era sempre um doce inusitado: um chocolate que nem sempre a gente tinha grana pra comprar, bala de goma ou um sorvete de massa de um sabor mais chique do que o creme de costume. E destravar esse momento tão particular das sendas de um sistema nervoso de alta voltagem é de enorme felicidade. Afinal, ele deixa uma lição que carrego no lombo pelos meus 36 anos de aventura: poder repetir as surpresas na vida. Que elas não sejam exceções, mas costumes. Que sejam levadas a sério e não negligenciadas. Surpresas não precisam ser caras e nem ter um momento certo para acontecer. São apenas instantes de auto-validação. De pertencimento. Seu para você.
Se você tiver muita sorte, pode conseguir introjetar isso no seu relacionamento. Eu tentei demais enquanto estive casado e também ao longo da minha última relação. Em ambos os casos, foi um fiasco. Apenas eu entrava na onda e me esgotava em pensar em surpresas bacanas e criativas. Caso não seja possível, indico que você faça para você mesmo. Foi o que eu adotei e ainda me aproprio da tática. Ainda mais em dias nublados, eu adoro me surpreender. Uma roupa, um expresso com um pedaço de bolo, um livro, um sabonete cheiroso, um jantar caprichado.
E se este texto soar óbvio, reforço que as obviedades podem transformar uma rotina. Não sou um sabichão das finanças e nem vendo cursos de escrita, mas essa receita tão simples pode realmente surtir o seu efeito. E vamos combinar que o mundo tem andado tão chato. Uma mesmice cansativa. Uma sensação de que já fomos mais inteligentes. Receitas de sucesso virtual que me enchem de horror e de preguiça. “Respeite os algoritmos e cresça X por cento”. “Arraste vídeos até babar e ganhe uma corcova no futuro”. Chá revelação, homens musculosos, sessões de quiropraxia em animais, astrologia em duas linhas. “E você quer entrar na casa mais vigiada do Brasil?” Desculpem, eu tenho ojeriza ao BBBOSTA.
E apesar das minhas surpresas terem falhado brutalmente enquanto estive com alguém, há uma pessoa que eu vou morrer me esforçando para dar boas surpresas, assim espero. Justamente aquela que me ensinou a importância da prática. Que fez de uma tática para lidar com as dificuldades da maternidade, uma lição de vida. Hoje, eu já tenho no repertório dois momentos muito especiais. Quando, logo depois da morte do meu pai, ela venceu todos os medos e arriscou pegar um carro e chorar a falta dele dirigindo por estradas toscanas e na nossa última viagem juntos pelo Chile, onde vimos neve cair pela primeira vez.
Quero tanto poder acompanhar de perto o envelhecimento dela e um dia, de maneira totalmente inesperada, perguntar. “Mãe, o que foi a vida pra você?” E ela poder me responder: “Uma surpresa”.
Lucas Galati
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e que seja uma boa surpresa!
Que texto lindo!