O SALTO
INFÂNCIA É A ÂNSIA DE SER INFINITO.
O postulado veio pronto. O encaixe que eu precisava para concluir um poema do meu livro: VERDE, VERMELHO E CINZA sobre um menino que escolhia madrugadas sonâmbulas para alçar voos inconscientes vestido com as asas da poesia. A infância traduzida como uma força motriz e o desejo sedento pelo infinito intangível ou apenas por gotas suculentas de liberdade.
Ser livre é um sentir tão poderoso quanto a felicidade. Não se alonga num estado, mas se nos toma é quase como voar. Tive poucos momentos assim. A maior parte deles durante a minha infância. Sou de uma família matriarcal e pude explorar o meu feminino sem julgamentos. Talvez, não seja mais correto fazer essa dicotomia ou querer definir o que se entende por feminino. No entanto, usarei o termo para expressar a magnitude dessa força na minha vida. Aos incomodados, não peço desculpas.
A minha liberdade, a minha rebeldia sempre foram femininas. E pude as vestir por ter sido educado por mulheres gigantes. Gerações de femininos que se reuniam numa mesa longa numa sexta-feira para analisar, com ajuda de copos de caipirinha, os absurdos e controvérsias da semana. E riam alto — sem temer certos e errados. Muitas vezes, a minha criança olhava para um espelho no andar de cima da casa da minha avó apenas para imitá-las. Em segredo. Todos os trejeitos, as idiossincrasias.
Essa mesma casa escondia um quartinho nos fundos com centenas de itens saborosos, uma extensa colcha de retalhos que levava a minha avó diretamente ao passado. Foi ali que eu também preparei o terreno e mergulhei fundo nos primeiros passos da minha imaginação. Eram cofres, pastas, anéis, bonecas, máquinas de escrever, retratos, enfeites dourados…
Numa tarde, eu encontrei nesse quartinho um par de botas de couro que não hesitei em experimentar. Uma nova perspectiva se abria regida pelo elegante poder do equilíbrio. E eu desfilava aos olhos da nona que me aplaudia. De mulheres que esperavam atentas uma apresentação infantil se desenhar sem qualquer enredo ou inovação e respeitavam as performances que iam de Tchaikovski até Martinho da Vila. Por elas, eu nunca fui proibido. Nunca precisei tirar o batom da boca ou esconder a minha Barbie favorita. Nunca me impediram de girar com vestidos longos e floridos.
Eu fiz do feminino, o meu altar predileto; uma relíquia sob constante veneração. Na escola, eu admirava os grupos de meninas. Algumas delas, detinham a minha atenção por cursivas arredondadas ou caligrafias esquisitas que eu praticava até conseguir imitar perfeitamente. Outras, falavam em tom tímido e usavam as mãos como escudos. Eu também queria me proteger assim. Nos braços delas, eu descobri abraços. E troquei adesivos e confidências. Prometi amizades infinitas.
Não lembro exatamente quando o feminino passou a ser proibido. Quando começaram os julgamentos e as importunações. Arriscaria que por volta da quinta série, sexto ano nos moldes do ensino atual. Enquanto era alvo de chacotas e xingamentos, trocava cartas de amizade com outro garoto que sabia se defender melhor. Ainda acesso a angústia violenta de quando entendi que eu deveria mudar. Que eu tinha crescido de maneira torta e que o meu feminino tão habitual deveria ser rapidamente exterminado, castigado, extinto. De uma vez por todas.
Lá fora, essa perspectiva não deixou mais de ser reforçada. E os meus olhos ingênuos que, antes, admiravam trejeitos e posturas, ditas femininas, passaram a encontrar defeitos grosseiros no espelho e colecionar sintomas penosos. A minha segurança, que foi construída por mulheres encantadas, tinha sido devorada. Eu passei a assistir como os garotos se comportavam, eu engrossava a minha voz e fiz de um mau humor viril, uma capa ajustada e protetora. A irritação constante serviu como uma armadura. Uma maneira habilidosa e nociva de me fazer desaparecer.
Hoje, eu sou um homem gay com PHD e muito orgulho na conta, mas a batalha continua. Inconscientemente, ainda castigo diariamente o meu feminino. Não engrosso mais a voz, mas me desacredito e desisto com extrema facilidade. Assumo não gostar da heterossexualidade tóxica, mas me assusto com a morte. Escolho um armário eclético e cores chocantes, mas o coração salta da boca quando tenho que confrontar um chefe.
Nos últimos meses, o tempo tem sido um algoz. De maneira imprecisa, sinto que estou atrás dele e que tento brecar as consequências insolúveis da vida. Escolho não ver as rugas da minha mãe ou os tombos da minha avó. Escolho não ter que lidar com a finitude dos maiores exemplos que eu já tive. De como farei para tornar essas mulheres eternas. Ou simplesmente ter a vida como um giro infantil de um menino apaixonado por vestidos cobertos de margaridas.
Lucas Galati
Ilustração: Paula Cruz
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Filho amado!! Tô aqui ainda enxugando as lágrimas!! Foi um filme reprisado.. tão feliz..que a gente compartilhou...naquelas sextas feiras...Esperávamos com ansiedade ..QUE ORGULHO EU TENHO DE VC!! ..O final do filme...está sendo construído...a cada dia...árduo mas necessário! ! Te amo!!
Que texto! Que carga emocional forte e ao mesmo tempo tão doce! Naquelas sextas o mundo parava pra gente,e éramos tão felizes naqueles momentos! Que bom que vivi tudo aquilo, mas sem imaginar o que você teria que passar até publicar isto aqui. Perdoe-me se só vi bem mais tarde, que o menino talentoso que dançava na sala sem medos , cresceu e teve que enfrentar e sofrer neste mundo doido e cruel para achar seu espaço.Estarei sempre aqui