O segredo de Lília
E mesmo se as ruas desidratassem ou fossem tomadas por uma enxurrada de lástimas e máximas guturais e as casas comidas por um breu violento, apocalíptico. Ainda que os fogareiros mantivessem acesas chamas esquálidas, mas sobreviventes. As asas desesperadas de insetos bêbados, ainda não descobertos pela entomologia, insistindo o equilíbrio pelo ar pouco. Uma possível madrugada de luto e a procissão que estilhaçava botões de rosa e jogava um pouco de cor pelas calçadas que também estranhavam as notas agudas de canções seculares. Um instrumento de madeira, com um mesmo sibilar estridente, ajudava a manter um ritmo moroso para os passos dos crédulos e os infantes desafiavam o fluxo mórbido e eram perseguidos por mães solteiras e aflitas.
Só que, do outro lado, um pouco mais à frente, numa esquina vazia, uma mulher enfraquecida pelo peso das dobras de uma pele cansada, apelidava o vento, soltava os longos cabelos brancos e ria desenfreadamente. Todos a chamavam de Lília. Não era louca, mas tinha se isolado de toda a aldeia por conta de um segredo.
✨BEIJOS PARA BEZOS
E era só o que me faltava. Esse tipo de coisa aumenta demais a minha irritação costumeira. Próxima parada? Marte? Há quem diga até que, há bilhões de anos, a vida habitou o planeta vermelho. Acredita? Pois com o fim previsto e anunciado da Terra, os bilionários estão se coçando para desbravar e ocupar, de uma vez por todas, esse planeta vizinho. O projeto ainda se esconde nos corredores da Área 51 ou no sótão da Casa Branca, ninguém sabe ao certo, mas que existe, isso está mais do que comprovado. Marte será a Terra 2.0, só que com singelas mudanças: furacões de fogo, tornados avassaladores de uma areia rica em magnésio e potássio, um inverno com centenas de graus negativos e cositas más que a gente deixa para a estreia; água só a artificial que tem gosto de pum engarrafado e as habitações em naves de última geração. São muitos modelos e dá para escolher a cor, mas esse oásis será só para os afortunados com traumas dissolvidos em mamadeiras douradas e currículos aprovados nas melhores instituições que habitaram os tempos terrenos. O resto, a legião que sustentou a pirâmide do saudoso capital, diretamente para os meios do inferno, mas dizem que poeira cósmica faz bem para pés marcianos.
Agora, enquanto o almejado planeta não cabe na palma da mão, a gente brinca de tour para admirar a Terra de longe e mandar beijos para Bezos, que vai estar a salvo em solo americano e torcendo os dedos para que a brincadeira dê certo. Afinal, uma explosão ao vivo de um foguete com ícones pop e cientistas de renome seria ruim para os negócios. E nesse vai e vem sideral, com margaridas nas mãos e discursos profundos, continentes inteiros seguem o caminho carnívoro da fome, famílias ainda choram os seus mortos em guerras sanguinárias e os desastres ambientais multiplicam a força em potências nunca antes vistas, mas isso tudo pode e deve esperar. Olha, Katy! Olha! E não é que a Terra é redonda mesmo? E agora? Celular não pega aqui! Como que a gente contraria o absurdo?
✨ABSTRUSA INTELIGÊNCIA
Carrego a nova síndrome. A mais atual de todas. Nem nome tem ainda. Nenhuma descrição no vocabulário médico. O jaleco branco teve que assumir a absoluta ignorância na semana passada e desceu do salto para receitar chá de boldo, em caso de constipação. Minha mãe não sabe. Ficará em pânico. Pobre criatura.
Pelo menos ela já está habituada aos ápices da minha hipocondria, mas dessa vez é diferente. Eu te juro. Nem alarmado ainda estou. Imagine, portanto, que em mais nada acredito. E não é por falta de vontade. Culpo o 5G e esse futuro do pretérito propagandeado em todos os lugares, no mais longínquo cafundó: IA, IA e IA e não vai. Não vai, evidentemente. Como em qualquer outra promessa — que não será. Nunca será. É parte da natureza da promessa. É pior ainda. Peço encarecidamente ajuda. Não sei mais no que posso acreditar. Agora, deram para colocar até os mortos inventando frases não ditas. Personalidades mundialmente conhecidas, que percorreram uma vida para solidificar seus testamentos, viraram motivo de chacotas, chistes na moderna praça pública: a venenosa arena virtual e o coitado, que jaz em sono eterno, nem se defender poderá. Funciona assim…estanca a boca e coloca outra no lugar que mexe do mesmo jeito, mas dizendo outras coisas. Absurdos. Impropérios. Fantasias. Ao seu bel-prazer. Aí é só usar a criatividade restante e justificar o descalabro também na brincadeira. O mundo virou esse, afinal. Insuportavelmente brincante. Doses cavalares e puras de felicidade. O tempo todo. A qualquer custo. De qualquer forma. Você é obrigado a ser feliz.
E então? Me diga? Qual será o meu diagnóstico? O nome da minha síndrome? O tipo da navalha? O que acontece com a nossa cabeça quando a gente deixa de reconhecer o horizonte da verdade?
✨PARA AGENOR
Tenho medo de parecer piegas. Medo menino. Infantil. É que já li tanto sobre você. Tantos relatos comoventes. Revistas, livros, todos os álbuns. Sei que o meu não terá valia futura, nem arriscaria tamanha intenção, mas quem tem as palavras com tanta saliva não gosta de parecer dispensável. E eu jamais poderia. Não com você.
Estranho que, às vezes, imagino que você me acompanha. E já peço desculpas por me agigantar. É que o coração ainda bate quente no peito e o signo me regeu com boas intenções, mas hipérboles em demasia. Quantas vezes, em madrugadas com sangue na caneta, te penso? Como que, talvez, você daria cabo de uma frase truncada? De um pensamento absurdo, intrusivo ou leviano? O gosto abraçado da tua meninice eterna. Como que seria um beijo? Uma tarde? A praia de Copacabana aberta num Brasil tão novo, tão possível? E os tecos de cocaína? O whisky on the rocks? Um hábito desconhecido? Que apenas eu poderia desfrutar.
Ninguém me impressionou dessa forma. E tão cedo. Efebo ainda imitava, em segredo, teus trejeitos acesos. Uma rebeldia que eu nunca tive. Ou nunca pude ter. Faltou o mesmo berço. E do que eu, agora, reconheço faz tudo parte de uma trama inventada. De como imaginei você. Até mesmo na escolha dos meus verbos. Tuas sínteses apaixonantes e claras. Tua permissão foi suposta e eu exagerei também ao teu lado, nas arritmias do teu som, provei goles intragáveis de bebidas amargas e as madrugadas também me chamam, sabia?
Esse convite sei que é para os poucos. Até mesmo o empenho com essa mania de juntar bem as letras. Não quero soar arrogante e nem ameaçar alguma comparação indevida. Talvez e somente assumir um reconhecimento na tua figura idealizada. Isso deve ser permitido, não é mesmo? Uso consciente ao cortar os adjetivos das minhas linhas prolixas e na maneira que o meu olho admira o teu nariz delicado e as ondas cariocas do teu cabelo lunar. E é bem assim. Você vai e volta. Vai e volta. Um controle descontrolado. Ritmo perfeito aos que precisam mergulhar. Até um horizonte ainda mais azul. É a canção que me acompanha protegida no peito e sempre na direção contrária.
Lucas Galati
Ilustração: Lauren Mortimer
Charge: Laerte
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