✨ME DEIXA, MADEIXA
Ainda quero pintar o meu cabelo inteiro de rosa. Aliás, uma mistura da cor rosa com a cor roxo. Que tal? Talvez, um pouco de cinza para suavizar o impacto mutante. Até perguntei ao Ivan, o meu paciente cabeleireiro, sobre os cuidados necessários para uma transformação deste nível. Segundo ele, o segredo está na hidratação e no retoque constante. A coragem avançou silenciosamente três casas, mas sei que o caminho para o chocante estrear será moroso, já que cultivo hoje um prazer imenso em não precisar me preocupar com nada que envolva o universo capilar. Shampoo meia boca e só. E essa é uma daquelas amostras de sorte inquestionáveis, como o pão de geleia cair virado para cima, um certeiro bem-me-quer, procurar e não encontrar qualquer sinal aparente de calvície ou o seu ônibus dormindo no ponto apenas à sua espera para dar a partida. Aquele tipo de sorte que eu gostaria de manter nas próximas décadas. E no caso das madeixas, a tintura, se mal feita, recairia pesada sobre os ombros com direito ao isolamento e as costas derretidas pela parede gelada do box e da consciência. Ninguém está preparado para lidar com um corte químico aos quase 40 anos de altura.
Também não nego um desejo insistente por mais um piercing no nariz e sobre tatuagens? Faria pelo corpo inteiro. Não tenho qualquer receio e entendo a pele como uma linda tela a ser preenchida. Do que já foi rasurado, não gosto de quase nada, mas entendo como uma memória preservada de um momento específico. Um dia, farei uns reparos, mas ainda não encontrei um artista para chamar de meu. Sigo me divertindo com os errados.
E reforço esse compromisso estético por ter me prometido uma velhice excêntrica. Quero capa, bengala de tigre, unhas longas e botas até o joelho. Quero combinações divertidas, combinações extravagantes, quero ter tempo para me aventurar por bolsas absurdas e sapatos que mais ninguém compraria. Acho que esta é realmente uma parte minha que segue totalmente engaiolada. Uma barreira imposta não hoje que posso usar asas de urubu que mais ninguém estranharia, mas, naquela época, onde um All Star vermelho era sinônimo de ser uma cria do teatro e cria do teatro era diretamente proporcional a já ter dado o rabo incontáveis vezes.
Tenho um primo hétero que, durante a nossa adolescência, sempre apontou o dedo para a minha, segundo ele, necessidade de ser diferente. “Porque você se veste assim?”; “Precisa dessa calça?”; “Você finge que gosta de ler!”; “Você fala de um jeito estranho!”; “E o que você faz nesse teatro aí?”. Sorte ter sempre conseguido rir alto do que ele fazia questão de vociferar e passar por cima da imbecilidade das considerações, sem grandes agitações. Nunca o estimei ao ponto de me importar. É o típico posicionamento de alguém que sempre se encaixou, que sempre foi aceito, que nunca se sentiu julgado. Agora, aos que sabem o que é não ser parte, acho essencial vestir, em algum momento, as idiossincrasias dessa diferença. Eu acho que fiz é pouco e quero explorar ainda mais. Realmente me dedicar e sintonizar o meu ser interno com o meu ser externo, dar ainda mais espaço para as vozes da minha sempre indigesta diferença. Eu quero incomodar todos aqueles que precisam ser incomodados e também encontrar outros tantos que já se reconectaram, que estão se reconectando. Sei lá! Eu quero, enfim, que me vejam do jeito que eu gosto de ser visto. Com as roupas que traduzem um pouco da minha narrativa que não quer mais ser igual a de ninguém, que se inspira sozinha, que está viva, ululante e não foge mais de si.
✨MARISA MAIÔ
Veo 3. O programa mais promissor até agora para criar vídeos realísticos de qualquer situação usando inteligência artificial. De qualquer situação mesmo.
Viu, fi. A interjeição de espanto de qualquer pessoa que, assim como eu, acha que isso tudo vai culminar numa tempestade de merda, enxurradas violentas de caganeira e que, em algum momento, os amantes do Vale do Silício vão tentar voltar atrás, mas que sem sucesso, deixarão a Terra montados em unicórnios espaciais ultramodernos, alimentados por bilhões de dólares, rumo ao planeta vermelho ou ao mais próximo buraco negro.
Agora, vale dizer que Marisa Maiô teve a sua utilidade. À mim, no primeiro contato, provocou crises de riso imediatas. Curti, compartilhei, enviei para amigos, família, colegas do trabalho. Num cego instante, acreditei ser um programa verdadeiro e com algum respiro de originalidade. Um CQC reformado, mas sem bancada masculina, bem menos político. Um programa ou uma esquete com um humor inteligente e que atingiria, em cheio, a moral santificada e os comportamentos mais ultrapassados dos espectadores brasileiros. Eu fui longe. Achei que poderia ser uma versão melhorada do Lady Night da Tata Werneck, só que sem as piadas manjadas, sem os quadros repetitivos ou o humor heteronormativo. Um programa para chacoalhar com a estrutura sem sal da grade de enlatados comprados pelas maiores da televisão aberta. E o melhor de tudo! Apresentado por uma senhora de maiô e totalmente desconhecida. Que mané, Dona Hermínia! Eu já era time Marisa Maiô!
Só que, infelizmente, não demorou para eu descobrir que se tratava de inteligência artificial. Do começo ao fim. Nada era de verdade. Nada existia. E, como num passe de mágica, nos dias que se seguiram, uma explosão de esquetes no mesmo estilo da primeira assustaram o meu Instagram — que de meu não tem nada. O que era estranhamente inovador deu lugar para episódios de preconceito, racismo, homofobia. O conhecido “mais do mesmo” que habita os “reels” nossos de todos os dias. Virei a cara na hora e aguardei explicações. Afinal, elas viriam. Um viral criado por inteligência artificial é o tema perfeito para compor o primeiro bloco da maior parte dos programas jornalísticos que sobrevivem até hoje.
A pauta foi explorada como um avanço e tanto, um salto incomparável da tecnologia, o futuro mais perto do que nunca, mas como de costume, ninguém arriscou mergulhar, por exemplo, no que explica ter se tornado um viral com tamanha facilidade. O que está por trás do estouro da Marisa Maiô? E, na minha modesta opinião, a resposta se encontra no abismo angustiante que habita o entretenimento televisivo brasileiro.
Talvez, o humor sagaz e criativo seja mesmo episódico. Muitas vezes, apostei nessa equação e justamente por entender a graça como algo extremamente mutável. A receita de sucesso que, uma vez, foi a “Escola do Professor Raimundo” não tem como ser mais unânime, muito menos apostar todas as fichas em programas manjados como “Vai que Cola” ou “Zorra Total”. As falas agressivas e também preconceituosas de “Dona Hermínia”, mais cedo ou mais tarde, vão perder totalmente a graça. Há episódios de “Os Normais” ou “Tapas e Beijos” que não poderiam mais ser exibidos. O estereótipo da bicha escrachada, como no horripilante filme “Crô” ou nos outros tantos exemplos de personagens que aterrorizaram as novelas das nove, não só não provocam risadas, como também fazem um desserviço à luta LGBTQIAPN+. Tudo isso para dizer que não é sobre liberdade de expressão. É sobre o que não é ou o que nunca foi motivo de graça e aos que se apoiam no sacrifício, mais uma vez, dos que sempre foram pormenorizados, apagados, torturados, extintos … estes não são humoristas. Nunca foram e não deveriam estar fazendo montanhas de dinheiro como tais.
É fato que não é sempre que teremos verdadeiras obras-primas que são inquestionavelmente engraçadas, como “Please Like Me” ou “Fleabag”. Não é sempre que “Grace and Frankie” ou “Hacks” estarão disponíveis nas plataformas ou um programa inovador como “Trolalá”, como “Chaves” ou o memorável “Charles Chaplin”. E, por favor, não comparo Marisa Maiô com o Grande Ditador ou Tempos Modernos. No entanto, houve algo surpreendentemente universalizante em segundos desse programa inventado por inteligência artificial. Algo que faltava.
Talvez, o humor não seja somente episódico, mas também mais simples do que se imagina e, por isso, tão difícil de ser feito.
✨DICAS PARA QUEM É DE DICAS
FEIRA DO LIVRO - 2025: 14 - 22 de junho/Praça Charles Miller/Pacaembu, SP
IN-EDIT BRASIL - FESTIVAL INTERNACIONAL DO DOCUMENTÁRIO MUSICAL: 11 - 22 de junho/ São Paulo
Lucas Galati
primeira foto: Iris Apfel
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nunca pensei em mudar a cor do cabelo, mas só de imaginar a trabalheira que dá para manter a nova cor eu já desisto até de pensar. hahaha