Entre Lemebel e Beyoncé
Até poderia percorrer as raízes sociológicas que resultariam numa suposta explicação do que faz uma obra de arte se tornar universalmente conhecida, o chamado mainstream. Contudo, os dedos da mão não seriam suficientes frente às inúmeras condicionais que abarcam o sucesso meteórico de uma pintura, de uma canção, de um bestseller. Talvez, eu arriscaria dizer, de maneira leviana, que o pontapé inicial se dá por um reconhecimento fogoso, uma identificação que antecede a obra em si. No entanto, esse diálogo entre o background pessoal e o produto artístico serve apenas para explicar, de modo genérico, gostos e preferências, da mesma forma que o meu estômago implora quase que diariamente por comida asiática. O que, então, explica a massificação de uma obra?
É no acesso que parte da resposta se esconde. E por trás dele, uma indústria se equipa para permitir que a cobertura seja eficaz e que nos vença pelo cansaço. A repetição é a cola necessária para instigar centenas, milhares, milhões a propagarem a obra que praticamente deixa o status de obra e vira um remédio, um vício, uma onda violenta e concomitantemente rentável. Em meio a e em busca deste oásis, um catálogo é montado para justamente favorecer essa explosão entendida como sucesso. Receitinhas a serem seguidas que vão alterar brutalmente o caldo que ensopa a obra, mas servirão, ao mesmo tempo, de munição para, por exemplo, lotar as casas de show e instigar o empresariado sempre sedento por um novo nome promissor.
No caso da música, que tem uma aderência muito maior, esse cenário é ainda mais notável. E uma legião destes “artistas” fazem fila nas rádios e a “frenteira” pesa no bolso. O famoso jabá não é mais ocasional, virou regra. No menu, um cardápio idêntico, especialidade da casa: “se espremer, não sai nada”. Redes sociais que trabalham da mesma maneira: carrossel com foto mal tirada. Se for um cantor, o refrão deve ser em apenas uma ou duas palavras no máximo. Separa por sílaba e sai repetindo. E então a canção ainda será em português, mas com tanto vibrato e abarrotada de melismas que dá um nó na língua e o idioma sai enfezado de mãos dadas com a bandeira americana.
Até aqui, não contei nada de novidade. A surpresa vem quando nomes já mundialmente conhecidos decidem relembrar o sentido do fazer artístico e nos espancam com uma obra transformadora. É o caso de Cowboy Carter, o novo álbum da cantora americana Beyoncé.
Desde Lemonade (2016), a diva alterou brutalmente os rumos da carreira e decidiu dar as costas para os mandos da indústria e sacudir os Estados Unidos com bandeiras historicamente silenciadas no país, como o racismo. Cowboy Carter é justamente a continuação de Lemonade, informação dada pela própria cantora. A diferença é que o álbum inteiro se inspira no country americano, altamente conservador e branco. Mas, definitivamente, Queen B não acertou apenas em defender o ritmo sendo uma mulher preta, as letras das músicas trazem uma narrativa bem contada pelo fim do racismo, da misoginia e pelo direito da liberdade de poder ser quem se é. Aqui, eu destacarei apenas a primeira canção do álbum, que se chama “Ameriican Requiem” e é a minha favorita.
Nada realmente acaba.
Para que as coisas continuem as mesmas,
elas precisam mudar novamente.
E não para por aí.
Podemos nos levantar por algo?
É hora de encarar de frente,
não é hora de fingir.
É o momento do amor entrar.
Abaixo o vídeo com toda a letra da música:
Eu poderia seguir desfiando o álbum todo, mas esse trabalho já foi muito bem feito pelo produtor de conteúdo, Spartakus (@spartakus). Ele reuniu todas as informações necessárias para quem quiser mergulhar na dimensão desse trabalho de Beyoncé:
Proponho, porém, uma reflexão.
Notavelmente, há artistas de destaque que já iniciam a caminhada com uma ideia emplacada e bem desenvolvida de estilo, gênero, do seu produto artístico como um todo e conseguem bancar as imposições de uma indústria e defender uma vertente de trabalho. No caso de Beyoncé, que se transformou ao longo da carreira na personificação da indústria musical americana, a reviravolta só acontece em 2016, quando ela desiste de emplacar hits e colecionar prêmios para finalmente apostar numa temática indubitavelmente importante para o país e ainda mais para si. Uma transformação que só surge, depois de anos e anos de conquistas. Agora, o quanto será que o dinheiro dita essa liberdade? Dita a arte? Quantos milhões são necessários para se tornar conhecido? Ou simplesmente para poder se libertar das amarras das cifras e desenvolver um trabalho impulsionado apenas pelo intuito artístico?
Sei que mexi com um exemplo de peso, mas a lógica que impera no macro também se aplica ao micro. Se não dentro de uma indústria, dentro de uma empresa, de um editora, de uma galeria importante. Já parou para pensar quantas vezes uma conta bancária recheada não interrompeu a sua caminhada? Quantas vezes não optou-se pelo sobrinho de alguém importante? O filho do embaixador com curso na New York Academy e mansão em Angra? Quantas vezes a palavra promissor esteve atrelada ao nível de proximidade com um possível investidor? Um agente exclusivo e de alta relevância?
É claro que qualquer artista parte da premissa básica da arte pela arte. Se não for assim, não vale o desafio. Por outro lado, todo escritor quer ser lido, um músico quer ser ouvido e um pintor ser admirado. E se o trabalho tiver que melhorar que isso seja feito de maneira responsável por uma crítica consistente e construtiva. Que a base seja apenas e exclusivamente a arte em si. E assumo que, talvez, eu esteja desenhando um cenário encantado com flores do campo e animais falantes pelo caminho, mas a lógica do capital é assustadora e impeditiva. Não alimenta, mas castra os artistas. Faz muitos desistirem e optarem por responder e-mails e ouvir discursos motivadores e professorais do chefe despreparado.
Toda essa revolta é culpa de Pedro Lemebel, descrito por Roberto Bolaño como o melhor poeta da sua geração sem nunca ter escrito uma poesia. Eu assino embaixo.
Agora, por favor, peço licença para colocar de novo o álbum de Beyoncé e repetir a palavra PROMISSOR em frente ao espelho até soltar um grito rasgado no travesseiro que dormirei para começar um novo dia.
Fui…
Lucas Galati
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é bom ver que beyoncé conseguiu se libertar das regras da indústria e tomou as rédeas da carreira dela. só é uma pena que seja assim para um grupo muito seleto de artistas.