FOGO-FÁTUO
Memórias, talvez, existam para que a gente não subestime o percurso. O saudosismo até pode ser passível de crítica, mas amargo mesmo seria existir sem poder jamais olhar para trás. Alguns, porém, são melhores do que outros na execução dessa premissa. Desde muito novo, eu ganhei o devido destaque no quesito e, com uma série de amadurecimentos inatos e estranhos para a tão pouco idade, posso me gabar de um cobertor de retalhos costurados com destreza. Quantos dias nublados já saboreei escondido debaixo dessa manta? Dias em que me dedico justamente ao endeusamento desse passado escolhido e então eu choro de tristeza funda, saudades engolidas ou assumo a galhofa generalizada e me mato de rir até a barriga contorcer de alegria decantada. O descontrole que me habita conscientemente se espalha por todas as extremidades e é tão vivo. Tão presente.
Na região central desta manta habita uma noite de muitas estrelas…
Certamente, não estava em São Paulo. Estava em Minas Gerais. Especificamente, no Santuário do Caraça. Uma excursão com o colégio que se concretizaria como a melhor de todas para muitos ali. Em hipótese alguma, eu voltaria para os corredores da minha escola maldita. Cultivo ojeriza do meu tempo escolar, algo que não posso dizer em voz alta. A minha mãe prefere a mentira do que relembrar o empenho e o saldo negativo dela e do meu pai após pagarem as prestações custosas de uma instituição de ensino religiosa que transformou a minha vida num inferno. No entanto, naquele dia, naquele momento, naqueles minutos que não chegaram a formar nem uma hora. Ali, no Caraça, no sertão mineiro, uma memória se destacou avoada.
Lembro de uma sensação gostosa de pertencimento, o que era absolutamente incomum para mim. Um grupo de pré-adolescentes jogados no chão assistindo ao céu e contando o número fugidio de cometas. Jovens que decidiram se reunir para conversar e sem qualquer outra intenção, entender a própria pequenez. Sei que eu apoiava a minha cabeça no colo de uma das minhas melhores amigas, que segue sendo até hoje. Um relaxamento nada habitual tomava o meu corpo num estado de graça e entrega totalizante. Naqueles minutos, eu tenho certeza de que fui feliz.
A manta ainda esconde umas boas dezenas de memórias nascidas em Minas Gerais. Foram poucas viagens ao estado, mas todas de uma importância salutar. Não sei se há um significado nisso tudo. Dizem que, astrologicamente, nós temos estados ou países de preferência e que facilitam o nosso caminho terreno. Acho que não acredito, mas Minas é sempre transformadora para mim. Estranhamente transformadora. Ainda quero, quem sabe, me permitir um mergulho merecido. Meses de estrada, ônibus em ônibus, muita literatura, música e sempre produzindo relatos incansáveis e conteúdos sobre a experiência. Só falta o patrocínio, a grana, a bufunfa…Porra, se eu tivesse vindo milionário, ninguém me segurava, ninguém arriscaria frear a minha onda. E sabia que por muito tempo desejei isso? Dinheiro, dinheiro, dinheiro a qualquer custo. Não para blindados ou marcas de luxo, mas para finalmente dar cabo de todas as minhas ideias. É muito angustiante saber que milhões na conta facilitam demais o despontar artístico. Quantos são os casos? Dezenas, centenas, milhares…
Mas não faço mais a sôfrega e sigo com a cabeça desanuviada e esperançosa. Quem sabe, não? Há um fator impressionante, inusitado na vida. Ela, definitivamente, não é previsível e, por isso, faz total sentido. A surpresa se esconde por aí. No meio de um viaduto em éssepê, na espera de um restaurante russo no Chile ou no vagão lotado que você desistiu de pegar numa estação de Londres.
Por favor, não quero nessas linhas soar delusional. Sou um niilista em potencial e em contato diário com as desventuras e desafios do existir. Sei também que nem todas as surpresas ou possíveis memórias serão cheirosas ou estarão enroladas com laços de cetim roxo. Essa semana, por exemplo, vivi o lado terrível da surpresa.
Perdi uma das maiores companhias de toda a minha vida. Julieta, a minha gatinha, amiga para todas as horas, confidente, necessária, escudeira se foi por causa de uma grave crise renal que se arrastava há um bom tempo. Nunca fui certeiro em despedidas e tenho um leve medo da morte. Não sei o que dizer e nem se devo. Não sabia nem se comentaria algo por aqui, mas as palavras não podem ser domadas. Isso é princípio de poeta. Não tente jamais segurar o escrito. As palavras devem saltar, antes da penitência do olhar. E, infelizmente, eu já tinha suavizado essa dor abissal da perda. Com o Joaquim (meu outro gato que perdi no ano passado), o trauma foi violento e ganhou outra estatura por não estar no radar. Da Julieta, a doença já tinha tomado o corpo, a notícia era sabida, mas o amor também é assustadoramente egoísta. Eu alonguei ao máximo, comprei dezenas de bolsas de soro, a melhor ração, uma cama com aquecimento próprio. Eu gastei em especialistas, fiz tratamentos experimentais, acupunturista. Não medi esforços e faria tudo de novo. Triste é aquele que não entende a dimensão dessa conexão. Que do alto da sua incapacidade, não enxerga a valia de um amor doado. Um amor sem qualquer cobrança. Sempre pronto. Sempre ali.
Julieta ainda está presente. Certamente, será uma memória nácar, a cor da sua pelagem encantada.
memória para amantar iluminar sol um dia que não soube acabar.
Um beijo, andantes!
Lucas Galati
Ilustração: Chiara Ghigliazza
❗OUTRAS EDIÇÕES:
✍️ A newsletter dos Andantes tem o modelo gratuito e o modelo pago. É importante destacar que no modelo pago, você vai contar com textos mais complexos e aprofundados sobre um determinado tema, dicas interessantes das mais diferentes ordens e para todos os estilos. Porém, o que é ainda o mais valioso para o presente autor é o texto em si. Seja a poesia, a crítica, a crônica, o conto…
A principal preocupação será sempre com uma construção textual criativa e inesperada. Costumo enviar uma nova edição da newsletter de 5 em 5 dias. Não deixe de arriscar os seus primeiros passos!
😜Só para lembrar que você pode adquirir o meu livro AQUI!
👀E se quiser me acompanhar nas redes virtuais:
Que texto lindo, gostoso de ler. Uma bela homenagem pra Julieta.
QUE LINDOO, BOA MEMORIA