FALHAMOS!
Seria o dom verdadeiro? Como um código de barras? O ferrete quente antes de uma ligação umbilical? Seria, portanto, ele, por si só, suficiente para entortar um ateísmo sossegado? Será que me habita? E a inspiração existe? Os melhores esperavam algum solfejo inspirador vindo do outro lado? Um sopro preparado, nascido de uma rota imprecisa? Latitudes criativas ou bêbadas? Um norte inventado? Angustiado, talvez, no meio do mar? Um pedaço solto de sol caçado com a palma aberta da mão e responsável pela aurora daquela canção? Por uma sinfonia inteira? As palmas, as lágrimas de um espetáculo secular?
E mesmo se eu secasse a magia da melhor obra humana, restaria um cálculo? A matemática explicaria o sucesso do próximo memorável? Os gênios foram todos exímios calculistas?
Não respondo. Tenho a escrita na mais alta conta. Aprendi menino a importância da persistência. Aprendi vendo o meu padrinho dedilhar as cordas do violão. Dizia que os músicos não podiam tirar férias. Ainda nesta semana, soube que Dalton Trevisan, aos 99 anos, seguia lógica parecida. Escrevia um pouco. Todos os dias. Com ou sem a atuação do nosso protagonista, sem prática, qualquer natureza morre.
Do universo factual, retive a responsabilidade e a frieza em poder enfrentar a notícia. Um aprendizado doído que me custou boas parcelas de sanidade mental. É quase como se eu soubesse do tamanho exagerado do meu coração, mas, ao longo dos anos, o ensinei a bater o tanto necessário frente à dor diária, frente à morte, frente ao sofrimento mais assassino. O cenário já muda quando me liquefaço na literatura. Nela, eu me permito o mergulho, sou frágil, aceito todos os sentimentos e as suas dosagens máximas, nenhuma repressão, nenhuma barreira, o que também produz as suas consequências nem sempre amigáveis.
São quase 15 anos de jornalismo. Muitas e muitas coberturas. Uma boa parte deste tempo dedicado ao entendimento da política internacional. 15 anos de atenção e tensão, de respeito para com a profissão, para com a informação, de agilidade, do desenvolvimento de uma técnica eficaz que me permitiu um knowhow quase robótico e muitos poréns aflitivos com a minha ansiedade. Também ao longo deste período, como vocês já leram em outras edições da newsletter, inúmeras frustrações com a profissão: o quanto ela é injusta, o quanto ela favorece os jornalistas mais afortunados, o quanto ela requer de você, o quanto ela é preconceituosa, o quanto ela te ataca e o quanto ela é parcial nas suas mais variadas abordagens. Por outro lado, cultivo momentos de orgulho, onde me senti, inquestionavelmente, útil. Um deles foi a cobertura da pandemia da COVID-19.
Naqueles anos terríveis, em meio ao desgoverno daquele-que-não-deve-ser-nomeado me coloquei à disposição da informação. Com três, com duas, com uma máscara, trabalhei sem folgas, longe da família e dos amigos, não tive qualquer descanso, tive que lidar com o medo de uma doença totalmente desconhecida. Ali, foi a primeira vez, onde percebi que não importaria o quanto você era amigo do chefe, com quem você almoçava, se você era gay, se você trabalhava de madrugada ou de dia. Você era mais um soldado em prol de um objetivo bem maior do que uma colocação ou uma oportunidade. Você era jornalista.
E posso assegurar que foi graças ao jornalismo que o brasileiro pôde ter dimensão da tragédia. O jornalismo foi essencial para que a informação chegasse, sem alterações; para que ela fosse veiculada de maneira precisa e sem titubeios. Foi a seriedade e o comprometimento dos tantos profissionais que provocou uma onda em defesa da vacina e evitou ainda mais mortes. Naqueles anos, o jornalismo foi mais importante do que o governo de um país.
Tudo isso para dizer que estamos falhando. Nós, como jornalistas, estamos falhando. Nesse momento. Nesse exato momento, os jornalistas estão falhando. Falhamos em aceitar não colocar, todos os dias, nas capas dos jornais ou nas manchetes dos noticiários televisivos, o número exato de mortes diárias nos bombardeios israelenses na Faixa de Gaza. Falhamos em escolher não ouvir entidades palestinas que produzem dados necessários para dar a dimensão da tragédia. Falhamos ao escutar apenas o exército de Israel e as falácias de um fascista como Netanyahu. Falhamos em repercutir apenas o que é dado na mídia ocidental junto com todos os seus interesses e conchavos. Falhamos em colocar em segundo plano, em pormenorizar, em fingir que não está em prática um extermínio, uma limpeza étnica. Falhamos em não nos unirmos, como classe trabalhadora, em prol dessa causa. Falhamos em não pressionar o presidente Lula para que rompa as relações com Israel até que um cessar-fogo seja colocado em prática. Falhamos desde a primeira reportagem desta matança israelense. Análises absurdas, um jornalismo leviano, protocolar, insensível com a terrível verdade que está em curso.
Não há meias palavras. Não tem mais parênteses ou outros eufemismos. O muro virou uma navalha. Está em curso, agora, o apagamento de um povo. Um extermínio patrocinado pelas altas potências hegemônicas. Uma carnificina exposta e acompanhada de braços cruzados…
ou no silêncio absoluto.
Lucas Galati
❗OUTRAS EDIÇÕES:
✍️ A newsletter dos Andantes tem o modelo gratuito e o modelo pago. É importante destacar que no modelo pago, você vai contar com textos mais complexos e aprofundados sobre um determinado tema, dicas interessantes das mais diferentes ordens e para todos os estilos. Porém, o que é ainda o mais valioso para o presente autor é o texto em si. Seja a poesia, a crítica, a crônica, o conto…
A principal preocupação será sempre com uma construção textual criativa e inesperada. Costumo enviar uma nova edição da newsletter de 5 em 5 dias. Não deixe de arriscar os seus primeiros passos!
😜Só para lembrar que você pode adquirir o meu livro AQUI!
👀E se quiser me acompanhar nas redes virtuais: