✨A MINHA CASA INFINITA
O CORAÇÃO - Eucanaã Ferraz
Quase só músculo a carne dura.
É preciso morder com força.
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Há algumas semanas, esquecimentos inconvenientes me assombram. Nada preocupante, eu diria. Segundos a mais na pescaria das ideias. É o nome da prima do amigo que não surgiu inteiro, apareceu com a estrutura toda quebrada: mais uma vítima de um baú abarrotado de demandas urgentes, noites mal dormidas, uma gripe resistente e quinquilharias que servem somente para ocupar espaço. A espécie do pássaro em extinção que foi confundida com uma nova marca de pirex ou ainda o blackout, a paralisia, a palavra saborosa sugada de uma vez só pelo breu sempre faminto, em direção aos meios dos confins intestinais, a desenvoltura em precisar estralar os dedos, fitar o nada e encontrar um sinônimo o quanto antes, evitar que o seu assunto esfrie e se faça desinteressante.
Retomo, portanto, uma coluna de 2016, da jornalista Eliane Brum para o jornal El País.
Muitos já se debruçaram sobre o tema, mas diferentemente do nome da prima do meu amigo e outros tantos episódios de apagões desta semana, a importância dos parágrafos de Brum foi preservada como um exemplo por todos esses anos. E se em 2016, quando a coluna foi escrita, iniciava-se uma discussão tão urgente sobre os malefícios da produtividade; em 2025 não há qualquer sinalização de melhora do quadro clínico. As demandas só aumentaram, sábado se tornou mais uma dia da semana e os livros de boa liderança e gestão de crise conquistaram prateleiras inteiras nas escassas livrarias de SP. Isso sem mencionar os discursos motivacionais que inflam a Internet e reúnem seguidores adictos no Brasil inteiro.
É que fica bem mais fácil acreditar. É quase como uma religião. Dá um propósito, traça um objetivo, justifica as dores, o cansaço extremo, as neuroses. Ir contra a corrente é o verdadeiro desafio. Afinal, chegar lá, — seja onde isso for — na maioria das vezes, não envolve o seu esforço, o seu desempenho ou agilidade nas oito horas diárias de trabalho e nem o valor exorbitante despendido em pós-graduações e cursos extracurriculares, mas a quantidade de sorrisos e abraços dados todas as segundas-feiras, o seu background familiar, o empenho em engolir a seco e concordar com o seu chefe, mesmo quando ele está absolutamente e vergonhosamente errado.
Agora, não se preocupe! Não tenho a intenção de seguir por esse frustrante universo business de ser. O tema já foi abordado até de ponta-cabeça. Assunto resolvido. O que aflige é que a casa ainda não está pronta. Eu, quando me mudei e depois que finalmente decidi assumir a minha vida de solteiro, tinha feito a promessa de frente para o espelho. Dessa vez, depois de duas situações frustradas, terminarei a minha casa. Finalizar e por completo, eu dizia. Móveis colocados, prateleiras feitas, paredes com tijolos aparentes, piso polido, parte hidráulica e parte elétrica de última geração. E o desejo existia justamente por não ter podido concentrar esforços em reformas. A minha mudança foi feita durante um período de melhora da pandemia da COVID-19, mas ainda sem prazos para a tão sonhada normalidade. E me vangloriei com o que foi possível, na época. Sei também me tratar bem, quando mereço.
Cinco anos se passaram e eu, além de não ter iniciado uma reforma decente, lido com novos problemas que, antes, não existiam. O que não foi trocado também envelhece e pifa e enferruja e precisa ser substituído. E assumo os meus privilégios em conseguir pagar um financiamento e ter um apartamento que posso chamar de “meu”. Por outro lado, a frustração existe na mesma medida. É que as dívidas também fazem aniversário e aumentam assim como as primaveras que brotam novos cabelos brancos e rugas aparentes na minha cara. E a sensação é que não haverá tempo suficiente. E tudo o que faço de melhor, tudo aquilo que me acho realmente bom não me rende um centavo. Risos melancólicos. Quero levantar a cabeça e também me dizer palavras de doçura, que ainda vai chegar a minha hora, que o Brasil vai mudar, que o reconhecimento será possível com ainda mais dedicação, mas os domingos servem para a gente também dar braçadas no abismo e nunca prometi apenas reflexões entusiasmadas por aqui.
Ser responsável o tempo inteiro cansa. Tem dias que desejo uma comida cara, entrar no shopping e escolher um sapato novo, a melhor camiseta da vitrine, um espetáculo clichê, um livro de duzentos reais. Tem dias que quero pagar a conta da mesa toda, tomar apenas drinks azuis e me associar ao clube do lado de casa. Tem dias que queria uma newsletter de sucesso absoluto, que me rendesse uma grana para investir mais nas minhas ideias absurdas ou, quem sabe, uma página de Instagram original e requisitada, um podcast ou um programa de Youtube considerado sincero e inovador. É irritante estar sempre no meio do olho do furação. É irritante lidar com o que é e sempre será intangível. E repito constatar tal fato do alto dos meus privilégios. Que são muitos.
Tem dias que queria simplesmente acordar e descobrir que ganhei um sorteio e que o Bradesco ou o Itaú decidiram me esquecer de uma vez por todas. Acho que nesse dia, eu lembraria de tudo.
✨XIXI SURREALISTA
Não foi de caso sabido. Quero dizer que foi da ordem do acaso. Se é que esse realmente existe. Subia a Rua Augusta, sem outro objetivo. Não tinha lugar agendado para estar. Nenhum compromisso. Ninguém me procurava. Nenhuma mensagem ou correio de voz. Eu até desejava uma tarde inteira de cervejas, mas sem uma companhia, a ideia foi enfraquecendo, sumindo do horizonte até que se perdeu na urgência de uma compra nervosa de um ticket de metrô. E eu desejava, naquele dia, conversar freneticamente, sem qualquer espaço para o silêncio. Queria atualizar alguém da minha vida ou ouvir anedotas da vida de alguém. Queria uma pessoa divertida para aquele dia, um amigo para todas as horas.
Do outro lado da rua, avistei o Cine Sesc. Segui no mesmo ritmo de passadas, quando me dei conta que nunca tinha assistido a um filme ali. Repensei meu cronograma de vontades e, sem maiores turbulências, aproveitei um semáforo fechado para atravessar e entrar no estabelecimento. Olhei o horário no celular: 15h23. Às 16h00, daria início a um clássico do cinema. Fellini. 8½. Não me recordava se já tinha assistido. Talvez, na época da faculdade. Logo, a long time ago. 14 anos, pra ser mais preciso. Comprei o ingresso e enquanto esperava, segui na minha leitura da vez. Te dei os olhos e olhaste as trevas. Entrei no cinema saboreando a inconsciência sobre a minha discreta bexiga apertada. Não sabia o que esperar e nem a duração da película. A sessão lotada. Era um clássico da década de 60. Marcello Mastroianni e nada mais do que isso. O filme começou e as aulas de roteiro, todas às quartas, mostraram serventia. Um filme perfeito de terceiro campo. Quem mais ali entenderia? Eu também pouco poderia avançar na minha explicação, mas mantive acesa uma felicidade discreta. Um filme em preto e branco. Uma narrativa nada linear. Ora fantástica. Ora real. Ora onírica. A bexiga contorcia, enquanto eu tentava supor um possível final para desaguar na privada e sentir o alívio merecido. Ao mesmo tempo, seguia entretido com a proposta e sabia de todas as perdas, caso corresse rapidamente ao banheiro. Segurei até o fim do filme. Assim que subiu o letreiro, eu já corria, idealizando o formato de um mictório na minha cabeça espremida. Cheguei em segundo ao sanitário e enquanto saboreava tremeliques e liquefazia a vontade, repensei todo o filme. A inovação da linguagem e como hoje me perturba a objetividade obrigatória, o quanto deixamos de avançar em formatos e cenários mais subjetivos, o quanto menosprezamos aquilo que não entendemos, o que não é factual, puramente crível. Depurei a minha escolha pela poesia, repensei as cenas do filme, saltou, no meio de um pensamento mais frouxo, Buñuel e Fassbinder. Essa espécie de surrealismo voraz é onde eu sempre deixei adormecer a arte na minha vida. A escrita dos sonhos. Usar as palavras como um caminho para dar corpo ao inexplicável, ao que poucos enxergam. Como a força que me levou a um cinema de rua naquela tarde de sábado. Como os caminhos desconhecidos da água depois de uma descarga.
Lucas Galati
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tenho essa mesma impressão de que fechamos cada vez mais os horizontes para o estranho, o novo, o surreal, o incompreensível. tudo agora tem de ser facilmente palatável e compreensível; do contrário, é rejeitado. como se fosse vergonhoso não entender, quando a vergonha deveria estar apenas em não querer buscar a compreensão.