A BANCA COM BANCA
Há uma banca de jornal no final da Avenida Paulista, bem perto do shopping. Uma banca que fica no começo de um viaduto. Ela não vende cigarros, nenhuma revista, nenhum jornal. Ela não se preocupa em adocicar a vida de ninguém com balas grudentas que arrancam obturações. Ela também não vende nenhuma marca de cigarros e nem garrafas de água para pedestres apressados. É um banca de livros. A sua maioria de extremo mau gosto, mas com preços irrisórios. O dono estende uma seleção, do que ele julga em destaque, apoiada no meio-fio que segue até boa parte do viaduto, como um tapete literário estendido ao som de buzinas e freadas bruscas. Em placas de madeira e com uma tinta azul diluível em água, o cardápio da semana se transforma em frases de efeito e elas são semanalmente trocadas. Dentro da banca, mais livros abarrotados, sem qualquer ordem ou divisão. A proposta tácita requer o comprometimento do leitor com a missão dada e quantos são os que realmente não deixam escapar uma oportunidade dessas? Em meia hora, a banca foi visitada por alguns idosos, amigos do dono; uma mulher que parecia ter deixado o trabalho mais cedo e um jovem atrás de revistas em quadrinhos. O movimento era constante. Um sebo de péssima qualidade, mas funcional. Um motivo para frear a pressa rotineira e passear por livros de auto-ajuda ou receitas de bolo, treinar fórmulas matemáticas com cadernos de exercícios de 2020 ou se aventurar pela biografia da Cláudia Raia. Um menu variado e inegavelmente contemporâneo.
Ao lado da banca, uma caixa com uma placa encostada com os dizeres na mesma caligrafia de antes: ACEITAMOS DOAÇÕES.
💡AMORFOS COM ORGULHO!
Meu caro Armando, as pessoas cansaram de ser bípedes. Se negam a valia da razão e agora caminham de quatro ronronando pelos cantos. Os gatos, os de verdade, se assustam e não aceitam o exemplar patético que se esforça pela aceitação dos bichanos. As orelhas são compradas e podem ser também de cachorro e esses costumam ter mais simpatia e não destratam o humano em fuga. Essa “metamorfose ambulante”, que me perdoem Raul e Kafka, foi apelidada de Therians. Uma tristeza sem fim, mas, meu amigo, eu até que entendo. O mundo está de ponta-cabeça, não é mesmo? Os salários são de fome, os fascistas ainda paralisam as ruas aos domingos, as telas secaram as lágrimas. Ninguém mais chora, mas os meteorologistas disseram que vai chover na semana que vem e isso melhora demais o meu sono.
🔎MARINA ACENA:
Definitivamente estou velho e cada dia mais rabugento. Não entendo o sucesso avassalador de astros como Pedro Sampaio, que mais parece um “Enzo” que ganhou um teclado novo de Natal e agora liga para Alcione para explicar o funcionamento e as supostas inovações. E são milhões na conta e as marcas pedindo a presença em eventos e a criança segue correndo, histriônica, com o maldito teclado e uma voz metálica repetindo uma mesma palavra, apenas se atentando a separação das sílabas. E então o “Enzo” estrala os dedos e liga para a amiga babadeira e influente para fazer um som. Não, meu amor! Não estamos trabalhando mais ao molde de: Preciso dizer que te amo. Hoje, nós publicamos notícia de que um tal de Jão se cansou do sucesso e investimos no hit: Bota um funk! E eu faço questão. Um clique, vai:
A peça publicitária (não tem como chamar de música) em questão tem 1 minuto e 45 segundos e vai de nenhum lugar para lugar algum. Perdoem-me, mas não é apenas pela minha variação de humor diagnosticada, isso é um absurdo para qualquer ouvido consciente. É de uma preguiça incomparável. É triste. E sei que é feito para estourar as caixas de som nas baladas Brasil afora, mas o mainstream decretou falência e lavou as mãos num quesito que eu julgava inato: produzir algo que possa ser realmente considerado música. Saudades eternas de Claudinho e Bochecha, Só pra contrariar, as máquinas de dinheiro que foram os vários Planet Pop — alguém se lembra? Definitivamente não espero Bach chegando com tudo nas paradas em 2025, mas também não consigo aceitar isso como um hit ou algo com qualquer outra valia.
Por outro lado, um respiro inesperado surgiu do hemisfério oposto desse balaio midiático. A cantora Marina Sena, desde que surgiu no horizonte, não me convenceu pela voz e a pegada tropicalista, mas pela composição e as escolhas que fez no primeiro álbum, que eu ouvi bastante. Depois, dei uma desistida. Achei que ela tinha se perdido, tinha se vendido demais para bancar essa de popstar. Começou a dar umas entrevistas dizendo que estava rica e isso me gera um incômodo imediato, um discurso torto num Brasil que caminha assassino e morto de fome. Sei lá! Nunca achei que ela era cantora para ter corpo de baile e danças no Tik Tok. Fiquei um tempão sem ouvir.
Porém, contudo, todavia, fui surpreendido com esse último álbum. Coisas Naturais. Não sei quem aí do outro lado já ouviu, mas eu faço esse convite. É um disco incrível! Sem dúvidas, o melhor da carreira dela. Ninguém vai poder dizer que a cantora de Taiobeiras, em Minais Gerais, não soube usar da voz ou que não se apropriou de ritmos que valorizaram ainda mais o caminho percorrido ao longo das faixas. Dá para sentir o empenho, o trabalho gigante de produção, as parcerias, a estética, a devoção dela ao ofício. E o que me deixou mais feliz é que ela não desprezou o poder dela de composição, que é muito bom. As músicas tem boas letras, algo que falta claramente no enfadonho mainstream. Não vou me estender, mas deixo a sugestão.
✨NEY LIGO!
Ah! Eu estou apaixonado. Não darei mais detalhes. E pode ser somente pela vida também. Um momento bom, um frenesi, uma barriga com formigamentos inesperados. Não interessa. Os dias têm sido mais curtos e uma ideia bacana de futuro assola os meus sonhos diurnos.
No final de semana, decidi colocar a cara no sol e aproveitar o primeiro dia de frio na cidade de São Paulo. Talvez, acompanhado. Brincadeiras à parte, fui conhecer a exposição do Ney Matogrosso no MIS. Não tinha ido ainda e só sabia que ela tinha sido prorrogada.
E isso é tão bacana, né? A gente ter um lugar desses. Porra! O MIS realmente sabe fazer. Sempre volto impressionado e dessa vez, não foi diferente. Achei a exposição bem curtinha, mas mesmo concisa, um passeio e tanto. Eu, por conta própria, já fiz uma investigação particular sobre o Ney Matogrosso. Mais novo, ele me enchia de medo. Com os anos de divã, fui entender que era no mesmo tanto que eu tinha de me assumir homossexual. O tempo passou e fui atrás dessa figura tão específica. Esse homem-criatura. A fragilidade feroz num corpo masculino que eu não sabia que podiam coexistir. Depois dele, conheci outros tantos. Rubi, Filipe Catto, mas o Ney foi meu estrear. O Ney sempre deve ser um estrear.
Dito isso, a história eu sabia de cor, mas o acervo de fotos e os figurinos valem a visita. Não tem como você não sair rebelde, mais valente e com um orgulho gigantesco de ser quem se é. O domingo foi bom e seguido de uma massa caseira no Merenda da Cidade, no centro. Um alívio para um estômago castigado por uma semana de intoxicação alimentar, mas isso já são águas passadas.
Um beijo, andantes
Lucas Galati
Ilustração: Karina Kuschnir
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ney é sempre um acontecimento. baita artista!