Um item esquecido
Ela.
Chegou bem antes do horário que adormecia num ticket comprado pelo desespero. O destino era a sua menor preocupação. Escolheu uma cidade de praia. Queria uma cidade de praia. Não sabia se pelo mar que movimentaria as suas profundezas, sempre tão sólidas ou apenas para sentir os pés se desmancharem exaustos e a visão finalmente se perder pelos quilômetros de areia.
Não estava ansiosa. Não mais. Há algumas semanas, ela tinha encontrado um ritmo parcimonioso e com poucos solavancos. E se adaptou bem. Percebia pelas crises de enxaqueca que caíram pela metade e o intestino que redescobria o valor de uma rotina abastecida por pratos reforçados e nada gordurosos.
Na rodoviária, comprou um pão de queijo e um expresso. Pensou em abastecer uma sacola com salgadinhos e balas de goma, mas a dieta seguia tão bem que evitou o impulso e apostou que o misto, preparado horas antes e guardado no bolso esquerdo da mochila, seria suficiente para saciar a fome durante o trajeto.
Olhava o celular, apenas para checar o horário. Tinha perdido a paciência com as redes sociais e não queria ser bombardeada por notícias devastadoras ou fofocas de celebridades que ela nem ao menos conhecia. O sol forte ainda batalhava por mais alguns minutos e ela se sentiu bem ao pensar que já estaria longe dali, quando a noite vencesse a disputa. E que, talvez, ela finalmente poderia fitar as estrelas e fazer um pedido silencioso. O pedido que banhava, inconscientemente, toda aquela travessia.
Apesar de não lidar bem com aniversários, reconhecia que envelhecer tinha permitido a abertura de canais eficazes de entendimento e que uma ideia indigesta, antes intransponível e assombrada por exageros, se perdia diluída nos seletos fios brancos da cabeleira castanha e leonina. Gostava disso. Gostava de, ao menos, se ver mais sua.
E um aviso sonoro pedia a movimentação para o embarque de número 17. Era o dela. Um casal atravessava a rua em passos rápidos. O pipoqueiro sacudia a panela que desprendia um cheiro que, automaticamente, lembrava a sua avó e renovava o amor pela profissão escolhida. Uma menina de olhos azuis se levantava e ajustava a calça que parecia incômoda. Um motorista que não viu o sinal vermelho brecou, assustado, bem em cima da faixa de pedestres. E ela não olhou para trás quando subiu no ônibus e buscou a cadeira 35A.
Um pouco antes da partida, refletiu sobre os itens que poderia ter esquecido. Chinelos? Check✅Escova de dentes? Check✅RG? Check✅Toalha? Check✅ Também não encontrou nenhum motivo, maior do que a sua bagagem, para uma preocupação imediata que faria, por exemplo, ela perder a viagem e sair do ônibus desesperada atrás de alguma solução. Estava no controle. Um domínio saboroso e inédito. Uma forma de pertencimento absoluto. Até pensou em escrever uma lista no celular identificando os sentimentos bons que ela sabia que emanava. Uma lista para que aquele momento não fosse esquecido anos mais tarde. Quis sorrir para algum passageiro, mas a timidez não permitiu. Ajustou os fones e acionou a sua música favorita, que também não falava de tristezas. Quando os motores do ônibus foram ligados, ela observava, da janela, uma folha seca dançar afoita pelo chão da rodoviária e…
ela foi embora, sem perceber que tinha deixado o Outro para trás.
Lucas Galati
Ilustração: Chiara Ghigliazza
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