Um desenho, um aviso
Nos meus vinte e poucos anos, os táxis também serviam para admirar o pico dos arranha-céus e esperar que a sorte assoprasse em minha direção um helicóptero que eu fitaria atônito todo o processo de equilíbrio de um pouso milionário. Ou ainda arrastar o meu ex-marido para dar voltas pelos bairros ricos de éssepê e ver algum magnata tirar a Mercedes de casa. Acompanhar os portões gigantescos das mansões se abrirem e um rico estranhar a presença de dois meninos dentro de um Corsa babando com uma vida inalcançável.
Por muito tempo, eu escondi essa insanidade até de mim. Demorei para conseguir verbalizar no divã o meu desejo em mergulhar na bufunfa e poder finalmente cultivar um estilo de vida compatível aos meus desejos mais dionisíacos. Viagens a cada mês, amêndoas e macadâmias, restaurantes Michelin, praias paradisíacas, lagosta e mexilhões, o cheiro dos quartos de hotel, tratamentos estéticos avançados com alguma vitamina revolucionária. Eu me permitia regar essas sementes todos os dias numa pretensa ideia absurda de que uma delas poderia germinar.
No entanto, o divã é implacável e o assunto calado virou tema recorrente das sessões de terapia. Venho de uma família de classe média da Lapa, na zona oeste da capital paulista, frequentei uma boa escola particular, minha universidade foi a PUC-SP, pude viajar para o exterior e até um clube de campo frequentei ao longo da minha juventude. Sempre tive total entendimento dos meus privilégios que eram conquistados pelo esforço desumano do meu pai e da minha mãe. Uma luta com unhas e dentes para se manter num status social que há muito não tínhamos mais condições de permanecer. E, consequentemente, essa batalha provocou dores, brigas e traumas que arrastei para a vida adulta. Apesar de privilegiado e ter a clareza absoluta dessa condição, a busca pelo dinheiro sempre foi um assunto recorrente, introjetado de maneira doentia. Para a minha mãe, grana no bolso era motivo para poder sorrir. Um sorriso lindo, mas escasso. Para o meu pai, o único objetivo dentro de uma sociedade produtiva. E dizia sem meandros. Dinheiro, dinheiro e dinheiro. Vislumbrava a casa dos milhões, mas caía arrastado nos copos e bares da vida. Morreu de um infarto fulminante sem nunca ter chegado perto do que mais desejava para a família.
E foi depois da morte dele que vesti de vez a lógica dos milhões e passei a acreditar que com esforço, empenho e dedicação, eu também poderia tirar a minha Mercedes de casa, ver a minha mãe esticar a cara e negar a idade no carteado do hotel fazenda nos três dias de férias do ano. Eu instalaria um mapa na parede de casa para pintar de azul todos os destinos já percorridos.
De 2015 até pouco antes da pandemia, eu trabalhei muito. Eu realmente vesti o discurso do meu pai e segui uma toada absurdamente insana. Eu me desrespeitei a todo custo. Tratei o meu corpo como lixo. Como já disse, jornalismo televisivo nunca será um ambiente de trabalho fácil, sadio ou… promissor. Promissor na suposta lógica que eu, inconscientemente, objetivava para a minha vida. Talvez, para os filhos de grandes nomes, para aqueles com as costas ardentes, que já chegam em posições de destaque, os milhões ou luminosos palanques possam ser ideais a serem perseguidos. Para mim, os tempos dentro de uma redação foram mais de sobrevivência do que de holofotes. Os motivos são inúmeros, mas passam pela minha sexualidade que ainda incomoda e perturba muita gente e vão até a dificuldade que eu tenho em bajular qualquer pessoa, seja ela menos ou mais experiente do que eu.
Dessa maneira e ainda com o auxilio imprescindível daquele mesmo divã, passei a entender que nunca envolveu o meu esforço, o meu trabalho. E sim quem eu era e dessa forma, o meu posto de chegada sempre esteve delimitado desde os primeiros passos, ainda como estagiário. O meu crescimento jornalístico não dependeria de horas de trabalho na madrugada, de reportagens bens estruturadas, de não dormir por 15 dias ou perder o meu aniversário por causa de um atentado. O meu limite de crescimento sempre esteve posto. Eu que escolhi não ver.
foi uma ideia capturada durante um cigarro em meio a muita insatisfação e cansaço. Mergulhar de vez na escrita foi uma reviravolta, mas também um reencontro comigo. A minha ajuda para lidar com promessas empresariais vazias, com as centenas de características que sempre me faltam, com o meu nome questionado ou esquecido, com a vaga que nunca me foi dada.
Hoje, a escrita me vestiu. Anda ao meu lado. É a minha parceira, minha amiga. E tenho explorado sentimentos e prazeres engavetados ao longo desse período. Na semana passada, descobri os acordes de Jacob Collier e enlouqueci com músicas como Little Blue e Witness me. Quis ouvir suas entrevistas, entender quem era esse cara de 29 anos. Esse britânico que escolheu a música dez anos antes e não desacelerou desde então. Um estudioso, além de um cantor que saboreia graves e agudos em arranjos tão inesperados.
Jacob lembrou o meu pai. Que poderia ter sido um artista de mão cheia. Em poucos rompantes de criatividade, ele pintou duas telas que já me servem de inspiração, que me respondem quando eu me duvido. Aos poucos, aprendo a me separar de quem ele foi. E abraçar quem ele poderia e queria ter sido. Quem ele quer que eu seja. Daqui pra frente.
Ontem, eu voltei a rabiscar figuras em algumas páginas em branco. Sem querer me responder. Páginas despretensiosas, mas encharcadas de sentido. Podem ser um desenho, um aviso…
Lucas Galati
Obra: Sem título/Edgard Balieiro Neto (meu pai)
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Pra quem viveu com ele sabe que teria sido diferente se tivesse olhado mais pra dentro de si mesmo.Não teve tempo e ninguém que pudesse mostrar outros caminhos . Fez o que fez por amar .
Que edição boa! Muito bom você ter escrito sobre essa tema que cedo ou tarde nos deparamos com ele :)