Sozinho e bem acompanhado...
Não sei explicar ao certo.
Sei que são dezenas de nós de angústia bem amarrados em pontos específicos e que interrompem o ensaio de um fluxo sadio e eficiente só até, pelo menos, provar do oxigênio que mora do outro lado, até vencer o areal que veste um deserto fustigante ou o olho do próximo furacão obsessivo. Estou assombrado. E não há outra escapatória; não há farol, nenhum mapa ou bússola. Não há um corredor secreto que me salve das agruras dessa ideia fortificada e inominável. A construção erguida pelos incansáveis trabalhadores do inconsciente humano.
E de uma maneira quase cômica, o desespero se espreguiça justamente pelo estranhamento dessa condição inata. É quase como se eu tivesse me libertado dos grilhões que assentam o reconhecimento do coração que bate no meio do meu peito e inesperadamente, pudesse me ver de fora da casca. Piscar os olhos e ter que enfrentar a mais pura biologia que explica a minha visão, a minha fala, a minha escrita, o movimento dos meus pés e braços quando decido caminhar pela rua esburacada. E dessa sociedade de bichos, da qual amanheci umbilical, eu fujo agora como um rebelde. No poder dilacerante de uma negativa sem fundamento, sem nenhuma causa aparente.
Até arrisco justificar a condição no vasto repertório que nasce de uma desilusão amorosa. Das milhares de vezes em que você aperta o rewind em busca de uma explicação convincente para um término abrupto. Ou ainda de desafiar o mundo sem nenhuma mão para abraçar. Reconheço a versão que vesti enquanto estive apaixonado. Reconheço que ela é uma e eu sou outro. Mas será que o peso da solidão é tamanho? Será que é suficiente para desestabilizar a tal ponto que prefiro a invenção de uma realidade amargamente crua, violenta, a-n-i-m-a-l-e-s-c-a. Uma realidade atormentadora que me tire do verdadeiro motivo do meu sofrer? Sou eu louco ou refém? Ou isso tudo é apenas mais um capítulo da minha tese sufocante sobre a finitude?
Dou as mesmas voltas e sinto todos os sentimentos de uma vez só. Como eu pulo de mim?
Desse cenário, arranquei a coragem com algumas gotas de café e decidi implorar ajuda à sétima arte. Apostei em “13 sentimentos”, do diretor brasileiro Daniel Ribeiro — o mesmo que fez o filme “Hoje eu não quero voltar sozinho”. Não tinha a menor ideia do enredo, sabia apenas que tratava da temática LGBTQIAPN+. E, por obra do destino ou um dia de sorte, a narrativa concatenava explicitamente com os tremores e sacolejos que venho me equilibrando.
Em linhas gerais, um jovem gay termina um relacionamento de 10 anos e se vê de mãos dadas com a solidão e com as aventuras, nem sempre prazerosas, que envolvem os encontros por aplicativo. João, que é interpretado pelo ator Artur Volpi, é também cineasta e tenta terminar um roteiro para a produção do primeiro filme da carreira. De maneira capciosa, Daniel Ribeiro arquiteta uma narrativa viciante que ora brinca com os dissabores e paixões da vida “real” de João pelas ruas da Santa Cecília, no centro de São Paulo e ora nos suspende com ajuda dos devaneios e perspectivas ficcionais adormecidos nas várias tentativas de roteiro criadas pelo aprendiz de cineasta.
Há vários outros elementos que perpassam a trama que me caiu como um presente num domingo difícil. Além disso, nos últimos tempos, cultivo uma predileção por filmes que não trazem como tema central um drama dilacerante ou um suspense que faz as minhas unhas pedirem arrego. Numa definição hedionda, 13 sentimentos é um HEARTSTOPPER 30+. Leve, sem ser leviano e muito menos sacal. E, claramente, serviu a sua função em me ajudar a espairecer e repensar as trajetórias que começam a surgir num horizonte ainda bem mais medroso do que o de João.
Cheguei em casa mais tranquilo. Enquanto escovava os dentes, pensei em ritmos e decidi desacelerar ainda mais. Não estava com pressa, mas alimentava um desejo secreto pelo próximo match. Sozinho, ri dos encontros terríveis e de outros que até poderiam ter evoluído por mais algumas semanas. Sozinho, refleti sobre a costumeira indisponibilidade alheia e o meu esforço despendido até aqui para ser absurdamente agradável. E que, de fato, eu não estou disponível para não ser eu neste momento. Sozinho, eu afirmei que não quero novas versões minhas, diferentes caras e bocas, mas encontrar alguém que me entenda por inteiro. Sozinho, eu me senti mais meu. E, depois do filme, até consegui tirar um cochilo antes de ir trabalhar. Sozinho, eu me achei engraçado, eu me vi livre e, pela primeira vez, muito bem acompanhado.
Lucas Galati
Ilustração: Enrique Larios
✍️ A newsletter dos Andantes tem o modelo gratuito e o modelo pago. É importante destacar que no modelo pago, você vai contar com dicas bacanas das mais diferentes ordens e para todos os estilos, mas que ainda o que é o mais valioso, para o presente autor, é o texto em si. Seja a poesia, a crônica, o conto… A principal preocupação será sempre a construção textual e literária. Costumo enviar uma nova edição da newsletter de 5 em 5 dias. Não deixa de arriscar os seus passos nessa andança!
😜Só para lembrar que você pode adquirir o meu livro AQUI!
👀E se quiser me acompanhar nas redes virtuais:
é fundamental saber estar sozinho e ser sua melhor companhia.