SATURNÁLIA
Carnavalizar se infiltrou pelos cornos de uma fantasia de “Malévola” e conquistou o status de verbo a ser melhor explorado agora ou num futuro próximo. Afinal, um país que chamo de meu há 35 anos e que faz dessa festa assunto tão sério, traz nesses dias de fevereiro um importante respiro de esperança.
Felicidade é um assunto caro e de interpretações múltiplas e complexas. Muitas vezes, ela se potencializa ao lado da segurança. Outras, com o término de um livro precioso. Muitos a sentem numa estrada bem asfaltada, numa boate ou num elogio bem dado. No entanto, eu pude compreender, em meio a temperaturas escaldantes pelas ruas da Lapa ou da Aclimação, que ela também pode operar de forma coletiva. Em outras palavras, a felicidade do outro tem capacidade de te convencer. E se a bateria de um bloco ou de uma escola de samba puder ser ouvida de perto, a felicidade estoura e você é só mais uma marola num oceano que convulsiona cores e brocais.
Nesse Carnaval de rua, uma lágrima se perdeu no suor durante “Coisas da Vida” do grupo Ritaleena(@bloco_ritaleena) e andei com fé nos acordes animados de Filhos de Gil(@filhosdegil). Grupos que se apropriam dos bastiões da nossa música e se esforçam em busca de patrocínios e permissões para que eles se mantenham acesos pelas ruas de éssepê em tempos tão fugidios e instantâneos. Acho que carnavalizar também é isso. É vencer o tempo. É pular corda com as linhas que comandam as gerações. É mergulhar numa festa sem dono, sem ingresso de entrada. Uma festa democrática que percorre do norte ao sul do país e corrompe as divisas, as fronteiras e que só funciona por ainda ser assim.
E essa felicidade selvagem e coletiva se potencializa justamente da possibilidade do frescor de um novo ano. 1919. O fim dos três grandes flagelos que atingiram São Paulo no ano anterior: a Gripe espanhola, a Geada e os Gafanhotos. Há estudiosos que ainda colocam nesse cálculo, o fim da Primeira Guerra Mundial e as Greves de 1917 e 1918. De fato, era a despedida de tempos catastróficos. O livro Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20 de Nicolau Sevcenko abre as primeiras páginas descrevendo o clima de euforia que a Saturnália promovia na éssepê daquela época.
O autor ainda cita um cronista do Estado de São Paulo que já percebia que havia algo de inusitado no ar:
Por que essa diferença? Não me parece falsa a observação, que ocorreu a muita gente, atribuindo-a à necessidade de um atordoamento que tivesse a virtude de fazer esquecer um pouco o mal-estar e as apreensões que anuviam o espírito público num momento delicado como o atual, em que o sopro revolucionário sacode toda a superfície da terra e a questão social constitui o problema de maior importância, para a qual todos os homens de governo e todos os estadistas dignos deste nome voltam o melhor de seus cuidados, de sua atenção e de seus estudos. O Carnaval deste ano foi, mais do que nunca, um derivativo necessário para este povo enigmático, que assiste impassível à consumação de todas as usurpações, praticadas em seu nome…( Carnaval e política - 12/03/1919)
E então carnavalizar também ganha o sentido de esquecer. De ter o direito ao esquecimento. Uma maneira de se renovar e, novamente, se permitir exercitar a esperança. E se for por apenas um instante, a rua que pula de excitação permite que o mesmo instante volte ou que ele ganhe novos tons ou que ele se agregue e conflua num estado mais duradouro, numa nova forma de encarar a vida.
Carnavalizar é irrestrito. É imoderado. Funciona também por permitir uma certa dosagem de anarquia que convulsiona as veias e vence os privados automóveis, as regras excludentes da especulação imobiliária, destrói as placas que alertam para proibições e penas. Carnavalizar são os passos que permanecem, fincam. Um movimento contínuo, os rios humanos que renascem e ensopam, encharcam as avenidas, as rotas que bombeiam o coração da cidade.
Que eu afirmo: está mais vivo do que nunca.
Lucas Galati
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o carnaval devolve a cidade a seu verdadeiro dono: o povo.
Poxa que texto bom! Parabens