Pedaços inteiros
Eu tomei as migalhas com as mãos. Eu as saboreei. Fiz um banquete com elas. Foi uma receita gourmet de um livro que pedi para a minha vizinha. O jantar poderia ter sido indigesto e provocado um tsunami no meu estômago já sensível. No entanto, as migalhas se mostraram aceitas e suficientes.
Até acendi velas cheirosas para celebrar a minha atitude inovadora. Providencial. Era isso. Tenho dificuldades em me agradecer. Acho isso errado. Quero gostar mais de mim e me forcei a aceitação de um abraço envergonhado. Um abraço que veio logo depois de provar das migalhas que me alimentaram como uma ceia de Natal.
Será que em dias azedos, migalhas alimentam as voltas mais profundas? O âmago? Será que servem para a gente lembrar de provar do pouco? Será que são pedaços? Inteiros quebrados? Ainda não sei se me respondi. E se há uma resposta, qual seria?
Deitei a cabeça no travesseiro que não demorou para ficar úmido. Quando não me ajeito em mim ou demoro para aceitar os espaços, eu me liquefaço. Espaços ou sobras? Quase me faltou o ar num engasgo inconsciente. As águas umedeciam também toda a minha boca. As minhas águas demoravam para entender os novos vácuos, voçorocas que sangravam ou que sempre estiveram ali, abertas com a força das minhas marés. Não queria entendimentos, eles se amarravam em torno do pescoço. Aceleravam silêncios absolutos.
As interrogativas expostas, abertas em feridas, nos buracos que as migalhas, enfim, cobriam. Por ora. Esses emplastros amanhecidos preparados de maneira amadora, mas funcionais. Migalhas são os ajustes. O pouco suficiente que não impede, ajuda as correntezas a fluírem. Jorrarem até desaguar no mar aberto de um perdão quente. Sincero.
Migalhas me ensinaram o que era preciso. O tempo tampa em tempo. Assoprar o brilho arenoso para outras estradas. Para outros palcos. Ensinar ao ego outros caminhos sombreados, rarefeitos, não menos transformadores. As divisões montadas numa cola primitiva, mas que serviam para refletir em exatidão. Até que o desenho caótico daquele amuleto fosse entendido como a proteção mais pura. Verdadeira. Minha proteção feita com tão pouco.
E que me salvou de irrealidades assassinas.
Lucas Galati
Obra: Golconda de René Magritte
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