Para você não ler
Eu cheguei atrasado. Um atraso conhecido, meu atraso adiantado. Eu tinha arranhado uma lista com cada um dos possíveis receios, os arquétipos que eu deveria saber vestir, em últimos casos. Numa outra folha, mais amassada, estendi as reviravoltas que apelidava com títulos de filmes de terror. E eu também poderia elencar as decepções que desceram indigestas até assentarem nos vagões do meu estômago. Eu estipulei limites para os excessos de uma empolgação menina e suavizei centenas de demandas fabulosas que poderiam soar pretensiosas demais, idealizadas demais, impossíveis demais.
Eu tive o gosto da certeza de que aquelas rasuras serviriam de escudo. Uma armadura redobrada e escrita, um contrato assinado de quem já tinha perdido alguma embarcação. E mesmo num equilíbrio raso, eu me avistei seguro e atraquei com os ombros retesados, em inconsciente tensão. Eu pensei em mudar o meu nome, pensei num altar colorido e numa casa de veraneio aquática, distante do alto da montanha que me instiga desde sempre.
Eu quis me fazer visto, quis anunciar cada conquista trivial e não contei quando os centavos me faltaram. Eu imaginei que a minha armação de gravetos seria suficiente para erguer uma estrutura habitável e longeva. E não encontrei problemas quando os beijos me faltaram ou as tantas vezes que eu tive que brincar com as constelações dérmicas e adormecidas dos costeados que eu enfrentava com diária frequência.
Eu abstraí todos os sinais e não falei do medo que me sucumbia, quando a serpente da raiva se defendia num bote peçonhento. Eu anulei o som do silêncio que corria solto em domingos que deveriam ser amantes. Eu aceitei uma cama amanhecida vazia e os corriqueiros dias virados, em qualquer outra companhia. É só uma controversa necessidade de independência, eu dizia.
Eu aceitei a indisposição dos ouvidos e todos os abraços invisíveis que molhavam o chão da casa e eu secava uma, duas, três vezes. E eu estava exausto das mesuras e meneios, de acenar a minha presença volátil e inesgotavelmente despercebida.
Mas eu cheguei atrasado. E, mesmo assim, eu esperei por três horas, três dias, três anos, regurgitando novas desculpas densas que pudessem solidificar as amálgamas que ainda mantinham o conforto de uma situação insustentável.
Eu cheguei atrasado e o eco da rodoviária vazia assombrou o viço da linha que costurava os meus tantos. Os pedaços se estilhaçaram e nenhum relógio respeitava mais a sua função. Com esse baralho de finais, afio a agulha que vou reaprender a manejar e prometo, não em breve, retornar inteiro.
E feliz com a minha necessária solidão.
Lucas Galati
Ilustração: Chiara Ghigliazza
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Que lindo!! Forte,honesto e sensível!!...
o ditado diz, e não é à toa: antes só do que mal acompanhado.