NOBODY CARES
Acordei com as mãos inchadas. Esta era a constatação. Isolada e pura, sem avanços reativos, sem fatalismos, nenhuma lição a ser tirada, a mesma concisão evidente aqui ou no meio de uma floresta recheada por árvores centenárias na Finlândia. Nos arredores de Leipzig, na Alemanha, uma senhora poderia perder mais tempo com a minha afirmativa revisitando um mito envolvendo nuvens assombradas de veneno e o espírito de um pato que infernizou uma aldeia antiga da região, mas até agora, de onde me dava pé, do meu modesto ponto de vista, a repetição permitida seria somente sobre o estranho inchaço das minhas mãos roídas. Não arrastei para a guilhotina internauta. Medo mesmo. Há alguns meses, cheguei a me despedir, aos prantos, dos amigos após uma checagem rápida no oráculo “googliânus”. Um questionário me conjurou um câncer gravíssimo no esôfago ou um tipo grave de catapora tardia e comecei o adeus pelos mais queridos. Não vale a dor de cabeça, não vale mesmo e digo pelo fácil e patético convencimento humano. Um depoimento mais choroso, uma lista genérica de sintomas ou um comprovante médico duvidoso para a gente deixar de comer feijão ou escolher o tênis mais caro da vitrine para aumentar o ritmo da corrida do final de semana. Meses depois, o vilão será o cobalto do celular, o brócolis mal lavado, o peixe contaminado de Brumadinho, a casca do avocado que eu não comprei, da última vez, pelo preço exorbitante. E nem companhia eu teria para um guacamole caprichado no meio da semana. Sou um solitário cada vez mais convicto. Otimismo mesmo ressurge na quarta-feira, quando abro a geladeira e noto a presença quase sensual das latas de cerveja gelada e penso nos cigarros já reservados para sexta. Quanto ao guacamole, eu realmente consideraria. Nas últimas semanas, tenho tido mais vontade de cozinhar, um resultado direto dos reais gastos nos aplicativos de comida. Como será o nome do Ifood finlandês? O que seria um prato típico por lá? Semana passada, eu precisava descobrir nomes e sobrenomes comuns em Angola. Motivos pessoais. Não consegui nada nas abas de pesquisa. O oráculo só jogou imprecisão na minha fuça e tive que desistir, antes de me aproximar do meu secreto objetivo. Agora, imagine em quantas horas a resposta seria descoberta após uma aterrisagem? Uma visita de alguns dias ao território angolano. Sempre quis pregar a minha breguice na parede no formato de mapas, em que você pinta os lugares onde você já esteve, mas a constância negativa das minhas contas bancárias têm alterado esse entretenimento imaginado. Viajar deveria ser uma prioridade inviolável. Uma quantia dada por qualquer governo logo após o nascimento. Certidão em mãos e os centavos caindo na poupança. Uso exclusivo para viagens futuras. Minha família insiste que eu ainda sigo mão aberta. Uma amiga me define como generoso. A minha terapeuta pede a minha opinião e eu minto reconhecer o meu descontrole. É que não quero repetir a ladainha dos preços assustadores de São Paulo ou como eu praticamente invisto na Uber, sem receber nenhuma porcentagem ou patrocínio em troca, pela preguiça de pegar, todos os dias, três linhas diferentes de metrô e um trem e andar para chegar no trabalho antes das 22h00. Vitimismo ou envelhecimento precoce, nobody cares. É isso que a gente demora, mas, enfim, se introjeta. NOBODY CARES. Não importa. Mãe, irmã, um amigão do peito, o vizinho que te viu crescer, sua bisa, na hora de mexer no bolso, o escorpião salta feroz e sai distribuindo ferroadas como meio de proteção. Há quem enlouqueça em busca. Pior, quantos não matam ou se matam por tostões e contas positivas? E eu não faço pouco caso. Juro que não. Afinal, sou um jornalista e sei dos abismos sociais que maltratam a nossa gente. As centenas de páginas que separam o brasileiro mais pobre do mais rico. O tanto que ainda devemos percorrer para ser um país com alguma qualidade de vida. Ao mesmo tempo, o dinheiro é uma abstração esquisita. Um papel estilizado que faz total e nenhum sentido: ao mesmo tempo. Agora, nem físico o dito cujo é mais. É realmente uma ideia, uma virtualidade, um cogumelo que te aumenta de tamanho ou uma estrela que te entrega invencibilidade e rapidez por mágicos segundos. Um dos melhores professores que eu já tive na vida começou uma aula ameaçando rasgar uma nota de 100 reais. Da tentativa, uma sala de aula inteira aos berros querendo evitar a tragédia. Ele quis arrancar uma lista de motivos, esmiuçar a nossa reação, explicar a importância complexa daquele pedaço de papel, do peso de um contrato social e a discussão seguiu com olhares atentos e bocas abertas. Sinto falta de aulas assim. Quantos contratos já estão assinados com um exame do pezinho? As mãos atadas antes da primeira palavra. Contratos tácitos que se arrastam por quase todo o planeta, normas que nunca serão perfeitas porque foram inventadas, inventadas por homens de carne e osso, adotadas para funcionar, muitas vezes, em outros tempos e que precisam de revisão, de novos diálogos, cucas frescas. Tudo isso para dizer que, assim como Rita Lee, acho que já fiz um montão de gente feliz. A felicidade de possibilitar uma viagem inusitada a um amigo que estava em burnout, pagar um festão de 60 anos para a minha mãe, ajudar a irmã a seguir com as sessões de terapia, convidar uma amiga em frangalhos para um jantar especial ou até sustentar por anos um parceiro que, depois do término, fui entender que não precisaria de nenhum centavo da minha ajuda. Serviu para o querido economizar e dar entrada no apartamento dele. Mesmo com as quedas e decepções, a minha relação com o dinheiro sempre se deu em deixar alguém feliz, em poder surpreender o outro, em proporcionar algo diferente do cotidiano, sair do script, extravasar. E realmente essa relação piora ainda mais quando perco o meu pai em 2015, aos 58 anos, num infarto fulminante. Dali em diante, eu assumi que o tempo era pouco e que os momentos deviam ser aproveitados em demasia. Ritualizados. E vocês não vão se deparar aqui com parágrafos de arrependimento, quem sente isso é a minha gerente que insiste num plano eficiente de empréstimos. Quero dizer que hoje não tenho grana. Que realmente não sei se algum dia vou ter. Mas que se acontecer e eu me rechear de papéis estilizados ou cogumelos encantados, nem que seja vindo de uma tímida poupança, eu tenho certeza de que o momento será dividido. De que chamarei alguém para dançar comigo. Certo ou errado, eu quero estar presente. Quero ter vivido. Não quero simplesmente passar avoado ou despercebido, como uma nuvem qualquer, vazia de chuva. Eu quero sentir que molhei alguns tantos por aí. Uma marca sutil, uma risada aberta, um coração alterado, uma opinião reformulada, um desenho guardado numa gaveta secreta. Que eu, pelo menos, serei contado para os filhos, para os netos, para os netos dos netos. De que, um dia, eu acordei com as mãos inchadas e que isso poderia não dizer nada, mas acabou dizendo um monte de coisa.
Saudades eternas, pai. Feliz aniversário.
Lucas Galati
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