Julietas no jardim
Uma mulher encantada vestida de sorrisos atravessou numa bicicleta o país dos paredões e dos confessionários.
É um sentimento retorcido que não avança. Que não pode ser reinterpretado. Não há sinônimos e não pode ser prescrito tratamento numa receita médica. É quase uma repulsa com pitadas azedas de desistência. Um cansaço extremo que questiona a força e a função de todas as juntas, os equilíbrios bobos de uma complexa rede muscular.
Sou alimentado por pequenas doses diárias de objetivo. É o que me amanhece. O que me mantém em pé. Encontrar esses bastiões de certeza permitem que eu caminhe por estradas mais saborosas e criativas. Longe o suficiente das penitências que agarram a perna e me puxam, vez ou outra, em direção ao vórtice animalesco da ansiedade contemporânea. A arte, definitivamente, sempre foi uma das minhas esferas do dragão, uma das minhas horcruxes, um chacra que eu preciso entregar o alimento fresco na boca e incentivar para que ele não se apague e destrua um universo tão caro para mim.
No entanto, a morte de Julieta Hernández assumiu absoluto protagonismo numa semana já cambaleante. E não quero nesse texto me aventurar por obviedades ou me apropriar do que já foi explorado pela mídia convencional. Sim, era uma mulher. Era venezuelana. Era uma artista que se vestiu da arte para traçar uma rota pelo Brasil que o Brasil desconhece. O Brasil que não se vê e que não é visto. O Brasil que deu mais um exemplo inquestionável do lado mais perverso da natureza humana. Afinal, crueldade não tem garras. Tem unhas.
Julieta que me lembrou Dandara que me lembrou Fabiane que me lembrou Marielle que me lembrou os incontáveis assassinatos de mulheres que fazem parte das coberturas presentes no meu currículo de mais de uma década no jornalismo brasileiro. Casos de uma crueldade carnívora que asfixia e dificulta qualquer reflexão póstuma. Casos que se afundam em clivagens traumáticas e alimentam pesadelos horripilantes. Casos que o próprio jornalismo brasileiro se apropria, quase sempre, da pior maneira possível: pensando no Ibope ou em mais cliques. Mas isso é um assunto para outro dia…
Julieta chegou ao Brasil em 2015 para estudos já na área do teatro e da palhaçaria. Mas apenas em 2019, Miss Jujuba — como a sua personagem nomeou-se — passou a percorrer de bicicleta as cidades brasileiras acompanhada do seu cuatro venezolano e da certeza, guardada na bagagem, de ser uma mulher sem fronteiras.
O assassinato brutal de Julieta Hernández não respeitará tempos verbais. Não será apagado e nem esquecido. Não pode ser tratado como um número. Uma estatística. Julieta é o sinônimo perfeito da arte. Maiúscula. Indomável. Irrepreensível. Sua perda será catalisadora: um movimento organizado que abale as estruturas políticas que funcionam justamente para calar os artistas e impedir que novas Julietas floresçam. Mecanismos criados para impossibilitar que o Brasil se reconheça e se cure. Que o Brasil saiba finalmente dimensionar a importância da arte em todos os seus cantos. E que reconheça o papel transformador que essa mulher teve ao tomar a sua bicicleta para espalhar sorrisos.
Julieta não morre. Julieta vira poesia.
Lucas Galati
ILUSTRAÇÃO: Bárbara Malagoli
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Definitivamente o melhor texto que eu li sobre esse fato trágico, desumano e horripilante.
Virar poesia, virar cura, deve ser esse o destino de Julieta e de sua arte. Como se a performance não pudesse "permanecer"... mas ela foi vista! Encantou pessoas país afora, justamente as que menos têm acesso a esse tipo de arte. Que essa arte, essa memória, possa curar nossa sociedade um dia.
Julieta permanece!
Obrigado, Lucas!
Que lindo e triste este texto, Lucas. A história de Julieta serve de inspiração pra muita gente, pra muitas mulheres. Que não deixemos a memória dela morrer, porque definitivamente o que desejam é podar a arte, a aventura, a vida plena e feliz que pessoas como ela representam.