Foi possível...
Definitivamente não foi por capricho ou passatempo. Muito menos por uma imposição. Houve um leve empurrão familiar, um incentivo para que eu pudesse saber que os caminhos existiam e que eram instigantes. Veredas que se abriam há léguas das ruas asfaltadas do mainstream que eu também consumia, mas com as devidas críticas e ponderações.
Quero dizer que outro tipo de arte, um lado mais preenchido da cultura, um suposto lado b ou como você quiser chamar se apossou não por opção, mas por extrema necessidade. Eu tinha 16 anos, mas era um jovem cru, sem nenhum preparo. Eu tinha muitos medos e as inseguranças engolidas se transformavam em graves sintomas em questão de dias. Nunca fui de poucos amigos, mas nessa época, nenhum deles me conhecia. Eu não me conhecia. Não sabia falar de mim, pouco tinha me aventurado no meu prazer e fazia do esporte e o sonho de ser federado no vôlei — como falávamos na época — um objetivo absoluto que me exigia horas de treinamento semanal.
Eu comecei a desenhar o amor pela impossibilidade. Um rabisco prematuro atormentado pelas dúvidas e os traumas que se renovavam no colégio. A cada dia, um novo garoto encontrava espaço para me agredir com bofetadas, roubar o lanche que eu acabava de comprar na cantina ou gritar VIADO antes que eu pudesse entender o meu próprio reflexo.
Quando, enfim, pude me apaixonar por um menino — o meu melhor amigo na época — eu já estava ferido demais. Não sabia como continuar; se a minha verdade, algum dia, poderia ser revelada. Se o meu segredo causaria espanto ou afastamento. Se eu estava doente realmente. Passei a desgostar cada vez mais de mim. Enxergava os meus defeitos a todo instante. Tentei anular o meu sentimento, fingir que ele não existia, me calar de vez. Pedi para ser sombra e passar despercebido. Encontrei na raiva a forma de me fechar num casulo espinhoso, que mais ninguém se aproximava. Eu nunca fui tão sozinho.
Sem nenhuma referência ou um próximo passo possível, minha saída foram os livros e os filmes. Capitães da Areia, de Jorge Amado, foi o primeiro livro que me fez chorar. Não demorei para entender que eu gostava daquele exercício. Ler me protegia dos meus pensamentos, das brigas violentas da minha mãe com o meu pai, do meu amor proibido. Os livros me transportavam para outro lugar. Outros mundos, bem mais interessantes e imprevisíveis.
Já os filmes me permitiram mergulhar na minha sexualidade. Tenho a memória viva de entrar na locadora em segredo e alugar filmes de cineastas difíceis. Pedia narrativas densas, descontroles, amores doentios, roteiros clássicos, modernos, eu tinha sede por referências. Precisava dominar as linguagens. Nessa empreitada secreta, eu conheci Pedro Almodóvar. Pela primeira vez, eu encontrava alguém que poderia ouvir o meu maior segredo.
Viramos íntimos. Os filmes de Almodóvar me protegiam. Eu me encontrava nas personagens. O amor entre dois homens, as críticas à Igreja, um feminino vibrante, vermelho, rebelde. A Má Educação de Almodóvar me trouxe coragem. Por ele, naveguei por tantos outros cineastas: Bergman, Fassbinder, Lynch, Kurosawa, Coppola. Mergulhei em Chaplin. Quis encontrar novos diretores, me apaixonei por Xavier Dolan. Talvez, ainda seja apaixonado. Chorei com O Dançarino do Deserto de Richard Raymond numa sessão solitária no Itaú Cultural que era ainda Espaço Unibanco. Eu me permitia novos movimentos de novo. Arriscava passos pela Augusta — um lugar altamente proibido pelos meus pais. Eu tinha aprendido a deixar o meu amor em paz. Eu era um garoto gay e começava a me sentir bem com a minha diferença, ainda secreta.
Lembro claramente de quando vi dois homens de mãos dadas e um beijo repentino de um casal num bar na Frei Caneca. O meu pânico de entrar em pânico. De não entender como eles tinham aquela força descomunal. Eu me via tão pequeno. Tão imaturo. E não sabia dominar os mandos do tempo, queria apressar as horas, estancar rapidamente as minhas feridas e sarar.
Aos poucos, entendi que eu não tinha vindo nesse mundo para ser mainstream. De que as minhas referências não seriam compartilhadas naquele momento. De que eu me fortalecia numa emancipação solitária, mas finalmente viva. Eu poderia, algum dia, amar. Eu poderia ser amado. E o meu movimento nunca mais parou. Veio Grande Sertão: veredas de João Guimarães Rosa que, peço desculpas aos críticos de nariz empinado, mas na minha primeira leitura me defrontava com um romance gay. O amor entre Riobaldo e Diadorim. O amor entre dois sertanejos. Aquela literatura que não era prosa, não era poesia. Um escritor com mãos mágicas que validou os meus sentimentos arredios. O meu amor inchava, transbordava. Eu não dizia.
E eu nunca disse. O meu primeiro amor se perdeu comigo. Não pude viver a minha narrativa. Por não ser correspondida. Por ter sido inventada por mim. Pela criatividade de um menino que nunca tinha visto um coração quente, ensopado de sentimento.
Mas se hoje fiz das linhas, o meu tônico. A minha ilha. Se hoje posso desenhar livre parágrafos é pela arte. A arte foi a minha cura. É a minha cura. E, portanto, será sempre a minha maior defesa na construção de um mundo colorido. Um mundo finalmente possível.
Lucas Galati
MEU PRIMEIRO AMOR E foi nesse metrô disparado em linha verde, foi em plena velocidade num dia de juventude acesa. Foi muito antes das consequências, que viriam. Foi inesperado, como o metrô me aparecia. Nasceu rápido em mim, o maior sentimento do mundo. E foi quando te ver deixou de ser arbitrário, virou um objetivo ainda que torto, disfarçado, mantido em segredo, calado até de mim. Uma vez por mês, duas na semana, todos os dias. E vieram as brigas propositais: corridas suadas atrás de mais socos e chutes, o único contato permitido. Discordávamos voluntariamente tamanha a vontade de concordar e seguir de mãos dadas, derrotando juízes, assumindo os nossos contrários. E foi quando numa praia, eu pensei em dizer. E depois, numa noite longa, eu quase disse. E quando eu perdi o sono, assoviei e você não me ouviu. Eu aprendi a engolir sentenças inteiras, cuspia escritas infeccionadas e afônicas. Montei diálogos, contos molhados de vontade e alguns sarcasmos. E quando eu estive pronto, no nosso primeiro silêncio, você irrompeu e disse sabido que entre nós adormecia a minha primeira história de amor. Nunca, a nossa. poema do meu livro: VERDE, VERMELHO E CINZA
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Obrigado por escrever isso. Me identifiquei muito, sabe? Você deveria publicar mais textos falando sobre infância, adolescência e amadurecimento – principalmente porque certas coisas que você descreveu são experiências universais pelas quais os homens gays passam, e que muitas vezes nunca é verbalizada.
Obrigada por tocar profundamente o meu coração com suas palavras tão carregadas de experiência. ♥️