entrelinhas
Dona Martha não me conhecia. Eu era quem a observava de longe. Sabia do quanto fazia do cigarro um motivo para puxar uma conversa com os colegas do comércio ao redor ou com os estudantes que entravam e saiam do colégio duas ruas acima.
Eu também já tinha percebido a sua preferência pelo preto ou peças de alguma cor sóbria, sem qualquer espécie de detalhe. Combinava a camiseta quase sempre com uma calça jeans surrada. Era uma mulher magra, com uma altura mediana e possivelmente com mais de 50 anos.
No entanto, essa suposta discrição de Dona Martha não a vestia por completo. E não digo isso pelos papos recorrentes e contagiantes que eu costumeiramente deflagrava, mas sim pelo fato de Dona Martha ser dona de uma livraria. Em outras palavras, Dona Martha era uma heroína disfarçada.
Nas últimas décadas, São Paulo tem se esforçado numa campanha de extermínio de livrarias. Além da falta de incentivo aos possíveis interessados em abrir um estabelecimento deste, o brasileiro não cultiva o hábito da leitura por inúmeros motivos. Entre eles, a falta de tempo e o valor astronômico dos livros. Uma pesquisa inédita encomendada pela Câmara Brasileira do Livro mostrou, por exemplo, que cerca de 84% da população adulta do Brasil não comprou nenhum livro no último ano. Não precisaria dizer mais nada, mas vou me alongar só mais um pouco e propor um exercício. Caminhe ao longo da Avenida Paulista — coração financeiro da cidade de São Paulo — e conte quantas livrarias você vê. Dessas, quais estão bem das pernas? Sem ter no horizonte um fechamento iminente? Eu não darei a resposta.
O exercício serve apenas para justificar o quanto Dona Martha é um símbolo de resistência. A livraria dela não faz parte de uma grande rede, não tem patrocínio, parceiro comercial. Não tem nem a possibilidade de fazer a compra no cartão. É dinheiro ou PIX. Dona Martha tem uma pequena livraria de bairro.
Sem querer deixar o posto de observador, eu demorei para finalmente conhecer de perto o mundo literário de Dona Martha. Nesta semana, desfiz o meu disfarce e fui surpreendido por uma agradável experiência que eu definitivamente não esperava.
A livraria é totalmente desorganizada. Abarrotada de livros no chão, sem qualquer cuidado. Em algumas estantes, nota-se uma intenção suave de manter uma divisão mínima pelo estilo literário, mas até isso não deu certo. Na sessão de poesia, por exemplo, as obras dos autores se misturam com best sellers de auto-ajuda. Um Fernando Pessoa abre a sessão, mas o mesmo livro termina a fileira. Dezenas e mais dezenas de títulos repetidos. Alguns espremidos nas sobras de espaço das estantes.
Logo quando entrei, Dona Martha tentou orientar a minha busca, enquanto reclamava do calor e do funcionamento de um ventilador paleozóico. Disse ainda que há pouco organizava a vitrine, mas que desistiu por causa das altas temperaturas. Foi quando notei, mais ao fundo, novas estantes lotadas de livros enrolados com apreço numa espécie de papel kraft. Centenas de embrulhos que me remeteram imediatamente à loja de varinhas mágicas de Garrick Olivaras, do primeiro livro de Harry Potter. Ao perguntar, Dona Martha disse que eram obras que não tinham sido vendidas, principalmente durante os anos de pandemia e que ela as guardava. E não me deu mais detalhes. Não era mais preciso.
Eu não estava numa livraria qualquer. Eu estava dentro da vida de Dona Martha. Ela tinha me dado a permissão de conhecer as estantes das suas conquistas e me aventurar nos redemoinhos encapados das suas frustrações. Ela me permitiu vislumbrar a coleção de seus livros machucados, caídos no chão. Folhear aqueles preferidos que dormiam protegidos nos andares mais altos. Ela me mostrou com orgulho a sua pequena vitrine: um esforço primoroso — pela metade. Dona Martha sorria. Ela tinha orgulho daquele mundo. Da sua desordem poética. A livraria pulsava. Respirava. Estava viva e conversava comigo. Um chamado. Um convite para eu me perder.
Um convite que eu aceitei na ousadia de um primeiro parágrafo.
Lucas Galati
OBRA: Camilo Martins (@camilo3martins)
PS: Como Dona Martha não sabe desse texto não me senti no direito de divulgar fotos da sua livraria, mas deixo o endereço para quem quiser conhecer:
ENDEREÇO: Rua Pires da Mota, 886 - Aclimação, São Paulo
Só para lembrar que você pode adquirir o meu livro AQUI!
E se quiser me acompanhar nas redes virtuais:
no INSTAGRAM e no TIK TOK!
E que triste né ? Não consigo aceitar esse movimento tão horrível. Visitei Buenos Aires há pouco tempo e por lá é muito diferente. Muitas livrarias. Fiquei emocionado de ver. Talvez, o Brasil tenha que olhar para o lado e aprender um pouco com os hermanos!
Lucas, que delícia de texto!
Só fiquei na dúvida se é uma livraria livraria mesmo, só de livros novos, ou um sebo? Ou os dois juntos? Vou tentar conhecer quando subir pra Sampa.
Mas é isso que você disse: a D. Martha é uma heroína de fato! Até quando? Vivo há anos com essa preocupação da falta de leitura em geral, especialmente com jovens. Entendo as questões sociais envolvidas, todo um contexto como você lembrou, de preços altos e de falta de tempo, além da falta de incentivo, das mídias sociais, etc etc etc.
Muito triste isso. Só acho que temos que continuar fazendo nossa parte, produzindo algum conteúdo literário, lendo, incentivando. Minha neta de 6 anos só ganha livros, muitos livros. E pelo menos por enquanto está dando certo, ela adora.
Abraços e parabéns pelo texto e pela descoberta da "intimidade" de D. Martha. :)