DELE(I)TE
Cara, a temperatura despencou em éssepê, mas não falo de qualquer queda. Falo de um desmoronamento térmico. Dizem que bateu os quatro graus durante a última madrugada. Quatro graus! Há dois dias, os termômetros apontavam agradáveis vinte e poucos. Como por essas bandas tropicais, o frio, que eu sou obrigado a assumir minha brutal predileção, ganhou pinta de celebridade bipolar, deixo um registro escrito para as próximas gerações saberem que éssepê em 2024 ainda tinha um surpreendente potencial polar.
O cachecol deu uma leve crise de rinite, mas não posso evitar dizer que os espirros foram assoados com folhas duplas de êxtase. Talvez, eu fique ainda mais melancólico no frio e eu, em certa medida, gosto deste estado. Ainda mais quando eu percebo que preciso de um tempo impreciso para pensar. Para me derramar de vez na escrita ou simplesmente ler uma obra extensa com a apropriada atenção. Ou para, quem sabe, me sentir genuinamente triste e ponto final. O frio é sempre um convite ao isolamento e, portanto, uma eficiente maneira de reanimar os neurônios sempre facilmente embriagáveis.
E eu ando tão de saco cheio. Uma preguiça voraz de me sentir obrigado a engolir, de uma vez só, essa pseudo-vida conectada, essa maneira amargamente editada de completar primaveras. Um cronômetro enfiado no local da sua preferência e que impõe, com ameaças pixeladas e um tique-taque ensurdecedor, a abreviação de TUDO ao seu redor: trampo, trepada, tráfego, trauma, tarô, tremelique… Uma hipnose que te convence a apreciar o exercício diário em babar na tela e que te consome paulatinamente na força de um vício. Uma espécie de inanição advinda justamente do excesso da estimulação. Certamente, uma estimulação questionável, infecunda, amorfa — para dizer o mínimo. Não aguento mais essa facilidade violenta que se entende hoje qualquer mensagem. Obrigatoriamente expressa. Inevitavelmente esvaziada.
O peso paquidérmico dessa constatação se deu numa tarde em que eu não consegui terminar um filme, sem apertar algumas vezes o PAUSE e bisbilhotar as mídias sociais no celular. Uma doentia falta de concentração, de não se ver apto a despender o tempo que for numa única atividade que sempre se mostrou facilmente absorvível pelos meus miolos. E a tristeza despencou bem depois numa promessa enfática de que o caso era sério e inspirava cuidados.
O reaprendizado se deu em justamente arrebentar o pé no freio e retardar essa abreviação robótica da vida. Não arrastar pra cima um engenhoso sistema nervoso e bufar repetidas vezes como sinal de impaciência, alongar os segundos numa retomada visceral, vitamínica; reconquistar os minutos e chegar ao enfrentamento das horas com os costumeiros livros lidos, as entrevistas saboreadas das personalidades que sempre me instigaram pelos mais variados motivos, alongar as tardes com álbuns de música ouvidos do começo ao fim ou simplesmente se prestar ao exercício de passar um dia inteiro sem exercer qualquer função: o marasmo absoluto e extremamente necessário.
Não quero ser altamente produtivo e muito menos abreviar a regência da minha orquestra cerebral num vídeo sorridente de 10 segundos. E se eu não estiver à venda em qualquer açougue virtual, quero poder vislumbrar um futuro consciente com a minha barba grisalha em algum boteco, na esquina de casa, rodeado por outros que também seguiram a maré, mas decidiram, em algum momento, alterar a toada, virar o barco e aproveitar as escarpas do contrafluxo.
Lucas Galati
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👀E se quiser me acompanhar nas redes virtuais:
desde que me retirei das redes sociais, no início do ano (ou final de 2023, não lembro bem), tenho sentido que meu tempo tem sido melhor aproveitado. consigo passar longos períodos sem a vontade de destravar o celular para ver algo pretensamente interessante no feed ou checar possíveis notificações. meu tempo de atenção a filmes, séries e livros aumentou sensivelmente. e até o tempo de atenção na vida, para as outras pessoas. antes, ficava muito impaciente com quem falava devagar ou era prolixo demais. agora, respeito mais o tempo de cada um. parece boba, mas é uma mudança significativa.
A vontade de abandonar redes sociais só cresce. Ter um Nokia só pra emergências e andar sem rumo pela cidade.