De passagem...
Eu estou indo embora.
Reuni todas as minhas economias, coloquei o apartamento à venda e devo partir em duas semanas. A burocracia ainda resiste intransponível, mas acho que em 14 dias, poderei respirar aliviado. A passagem será só de ida e o destino se perde em duas ou três opções. A única exigência foi ser o mais distante possível. Não sei se realmente encontrarei sentido em explicar de onde os meus parágrafos se abrem nesse bate-estacas que salva a minha vida. E, honestamente, soaria um tanto contraproducente. O sumiço bem-feito deve respeitar os mandos singulares do desconhecido, de uma liberdade tão imensa que angustia, de se ver andando de costas enquanto as pessoas disputam corridas sangrentas em busca de um primeiro lugar, visceralmente, intangível.
Eu quero sumir pelas congestionadas ciclovias de Madrid ou desfiar prosciutto num pequena comuna italiana. Quero assoprar pétalas secas no vento morno de areias nordestinas ou ainda rascunhar os capítulos do meu primeiro romance num quarto silencioso no alto de um morro que repete tudo o que eu digo. Eu quero saber descrever o gosto da neve que descansa no meu ombro menos responsável ou a temperatura exata do mar que banha num azul místico a costa de Reunión ou Martinica. Eu quero um colo que minta ser um porto seguro e que, depois de um beijo ensopado de vontade, grite o meu nome pelo abafado escuro marítimo e a direção do desafio seguinte. Eu quero, por vários meses, adormecer ao lado da lareira numa cidade suíça de nome impronunciável. Eu quero um repente colorido, um sorriso envergonhado, mas com preguiça de acabar e o barulho da televisão em algum idioma que me fará dar uma risada alta e livre, desafiando os decibéis permitidos num hotel no meio da estrada.
Eu quero uma passagem só de ida e assumir que, ontem, eu não dormi por sentir muito medo. E que eu esbravejei gritos ardidos no travesseiro e que eu chorei por me ver sólido e pelo isqueiro ser só mais um isqueiro. E que eu girei a chave na fechadura três vezes, uma barreira reforçada para impedir novos pulos sagitarianos. E que eu também me assusto com a maneira dos meus pés se fincarem ao chão ou como o abrir da minha boca de frente ou de lado faz todo e nenhum sentido, sendo apenas uma atividade trivial e puramente mecânica. Apenas o abrir da minha boca.
14 anos depois, eu me reconheço e me reapresento para mim. Eu me cumprimento, eu me saúdo e embarco, sem pretensão, numa viagem que me desaparece na mesma intensidade que me remonta. Eu não estou pronto. Ainda bem. Chegou a hora de eu me (re)conhecer, distante das palavras que eu aceitei receber em ramalhetes invisíveis. Em futuros irreais. Em domingos de mãos dadas com os domingos. Desistir, enfim, da solidão acompanhada. Por enquanto, aqui. Mas bem distante de onde, uma vez, eu já estive. Nessa passagem embarcada até o meu destino. Exclusivo e próprio. Garrafal. Inteiramente MEU. O meu outro lado do mundo.
Lucas Galati
Ilustração: Aline Zouvi
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Gostei muito! Me identifiquei demais! 😄
uma passagem só de ida. com ou sem bilhete de despedida?