De lá de cima
De lá de cima. É assim que ele a tinha. Um recorte de origem infantil, de quando as areias de um litoral querido soltavam-se pelo ar, impulsionadas pelo eixo perfeito de pernas erguidas compulsivamente — um lampejo primitivo de liberdade. Calcanhares anárquicos que desafiavam as leis mais básicas da física, memorizadas pelos berros conhecidos de uma mãe protetora.
Entre corridas, saltos e tombos, o mundo das inúmeras perspectivas. Óticas que se formavam primeiras, de um azul tão poderoso que engolia e, já tomado, ele inspirava o tom exato num respiro fundo inflado por futuros prometidos aos santos que ainda desconhecia. Mas todo marinheiro se volta: aos cânticos em noites lisérgicas, as promessas dos amores de porto, ao consolo da marola imprevista. Ao pequeno aventureiro, ela. Ali em cima. No ponto mais alto que ele conhecia. Não saberia o caminho, eram formações pontiagudas, rochedos íngremes, escarpas que se erguiam até a pedra escolhida por ela. A mesma, contemplada todos os dias. Uma caminhada solitária, alguns alegavam penitência, embriaguez, até mesmo loucura. Mas ele a observava cuidadosamente: não poderia presumir, arriscar inverdades, precisava saber os intuitos daquela mulher, sua curiosa meninice proibia imprecisões.
Numa manhã de céu aberto, de um dia qualquer de Janeiro, convenceu os pais a chegar mais cedo à praia. Estava preparado para conhecer o percurso, descobrir os seus meandros, os segredos mais antigos da travessia numa subida heroica até o cume ou no trajeto penoso de um castigar necessário. Aquela mulher lhe diria alguma coisa. Estava pronto para conquistar o seu lugar na pedra mais alta.
Ele não buscou a mão do pai e se adiantou em passos largos, quase corridos. Seguia preciso, como uma flecha, um míssil. Sem delongas ou acasos, o seu destino era particular e o seu alvo, conhecido. Lá de trás, a mãe insistia por atenção, uma justificativa plausível para aquele comportamento incomum. Ele não atenderia, não olharia para trás. Desta vez, não suportaria os minutos gastos até o pai cravar o guarda-sol nas areias da praia do litoral querido. Atracou adiantado, a respiração esbaforida. Imaginou ser meio-dia, a visão se embaralhava num rápido desespero, uma busca inconsciente por referências, mas tão logo se abriu à frente o horizonte, alinhando o que precisava ser alinhado, alinhavado, uma história que precisava continuar. Sob condições estáveis de percurso, rumou a estibordo nos mesmos passos meninos de outrora, mas acelerados por sentidos selvagens, uma revolta sedenta pelos segredos daquela mulher.
De longe, ele não a via. Gabou-se por um suposto poder de análise, poderia lê-la, prever suas direções, mesmo tão distante. Probabilidades ou talvez gotas de destino finalmente colocariam um fim aquele enredo. Zarpou feroz, precisava chegar ao pé daquelas formações rochosas e esperar. Esperar até ela chegar e só então se aventurar nos caminhos dela ou seus, serpentear sobre escarpas afiadas e enfim atingir a pedra mais alta.
O suor rasgava os poros, o coração batia numa cadência desconhecida, ele se alimentava daquele ar pouco, ainda se apoiando na linha que sustentava o horizonte. Já ao pé do morro, o desafio caiu sobre os ombros e, pesado, procurou o mar. Ainda no raso, despencou ancorado. Quis arriscar um choro tímido, mas as marolas mentiam as lágrimas.
Esperou uma, duas, três horas. A mulher não apareceria. Já imaginava sua mãe desesperada, o pai percorrendo a orla da praia à procura de respostas. E sabia que logo o encontrariam, já até se acostumava com os dias, meses, anos de castigo, mas não deveria ser encontrado. Não agora que havia chegado até o pé do morro. Numa onda quente de desvario, arriscou os primeiros passos, ainda cambaleantes e prosseguiu num equilíbrio marítimo. Apoiava instintivamente pés e mãos, uma dança embalada por correntes frenéticas de adrenalina, um ritmo próprio e solitário, tão próximo do suposto compasso da mulher desaparecida. Repetidas vezes, pausava a subida para se aproximar da borda das pedras, erguer a cabeça e se certificar da distância cada vez maior do chão.
Foi quando não encontrou mais ao que se apoiar, acima dele apenas o céu, do mesmo azul de quando conheceu aquela praia, levantou trêmulo e alguns metros à frente a pedra da mulher adormecia, o rochedo mais alto daquele litoral querido. Caminhou vagarosamente e se sentou já sem receio.
Ali, os ventos eram fortes e diminuíam a sensação de calor, o suor começava a secar na pele de escamas, o coração já não se assustava com as intensidades, ele se acalmava. Fechou os olhos e percebeu que, bem próximo de onde estava, pássaros chilreavam, arriscando, vez ou outra, piados agudos, frenéticos, como as suas pernas jogando areias pelos ares no início da travessia. Logo, plantas de folhas grossas se roçavam num farfalhar saboroso aos ouvidos. Mais distantes, árvores ainda maiores envergavam os seus troncos com a força do vento, de um lado ao outro, produzindo estalos que assustavam alados miúdos. Mais alguns minutos e ele já ouvia os arranhados dos pedregulhos agitados pelos mesmos ventos que sopravam o enredo para frente. Só então se deteve ao mar, um som gigante que quebrava em ondas imprecisas, mais fracas ou mais fortes, uma constante disritmia que serviu naquele momento para justificar todo o esforço. Sentiu vontade de cantar e cantou, uma música inventada na potência criativa do que a pedra mais alta lhe proporcionava. Falou dos corsários, de tesouros escondidos nas profundezas, previu as tempestades que viriam. Cantou feliz, alto, livre. Cantou a sua música, uma composição natural carregada por um refrão grudento feito a maresia, de quando decidiu se aventurar por areias escaldantes, abrir o peito sobre um céu azul inteiro e seguir os passos da mulher, dona da pedra mais alta.
Quando ele abriu os olhos, ela estava ao seu lado. A dona daquilo tudo. O menino tomou um susto, pensou em pedir desculpas, mas logo desistiu. Ela o olhava, como se o conhecesse, como se soubesse de toda a sua travessia. E as palavras se perderam afogadas na saliva. Ficaram em silêncio por mais algumas horas. Quando decidiram descer, o menino já tinha crescido.
Lucas Galati
Ilustração: Willian Santiago
Este texto não foi escrito agora. Foi uma homenagem à minha avó Clair entregue numa noite de Natal. Publico hoje por achar que ele se conecta inteiramente com o que foi 2023 para mim. Como essa mulher da pedra mais alta foi essencial para eu encarar a travessia e encontrar beleza no percurso. Mesmo nos ápices do medo, esse texto sempre volta como uma onda de uma praia de um litoral querido. Não publicarei mais textos até o ano que vem. Eu quero agradecer todos que chegaram aqui, que se sentiram acolhidos e que me ajudam a espalhar as minhas palavras. Muito obrigado. Desejo maravilhas em 2024 para todos nós!
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texto foda!
As emoções da meninice transbordaram e me levaram de volta no tempo... que texto!
Um 2024 cheio de paz, harmonia e poesia a você e sua família, Lucas!