A carta
Lembrar é um esconderijo. As direitas e esquerdas, as ruas contrárias, amálgamas, semáforos, ladeiras desertas e escarpas floridas até se chegar ao sobrado amarelo, onde atrás da porta do único quarto estará um armário de madeira.
Na quarta gaveta, ao lado do cinzeiro de cristal do meu pai, adormece um livro antigo. Na página 42, uma carta dobrada cinco vezes. Nela, depositei em linhas começadas: a promessa azul feita na virada de um ano estático, o cheiro da mistura de cigarro e perfume amadeirado, um travesseiro que amoleceu a minha raiva e secou a lágrima de quando encarei o nunca. O verso que eu arrisquei na esperança de entender os agudos dos nervos que reagiam ao sabor de um beijo ácido, mas ensopado de sentimento. Estarão o Corcovado e o porto de Cananeia, quando cortei o oceano ao meio num mergulho tectônico até encontrar o anzol que me hastearia de volta. Nem como homem nem como peixe. A foto mal feita que eternizou o primeiro cometa de um olho-mundo e os diamantes que piscaram em sintonia numa nova galáxia, desconhecida por cientistas, mas que gelava o meio do meu peito. Descrevi também a primeira vez que queimei palavras arredias e esperei para me embriagar com a toxina liberada pela fumaça que mentia a neblina. Uma fogueira bruxuleante que desanuviou um formato de destino e me pediu as pernas para saltar as saudades. Pude anotar uma poesia curta, lida repetidas vezes até que eu absorvesse a dose assassina de sentido. Mandos que romperam os fios de aço que erguiam a minha cabeça cansada e quebraram com marteladas secas, os gravetos que dimensionavam o peso das minhas nuvens. Perto do final, um parágrafo de vírgulas. De todos os tamanhos. Um riacho gramático para que eu não solidifique. O poder da água que arranha e irriga as minhas encostas e me leva até o próximo continente. Ao fim, estará exposta a mentira que revelei ao meu reflexo opaco e que permitiu uma história de amor inventada. O sexo depois da pele, narrativas cruzadas em lençóis oníricos que remexeram as estruturas que erguem um bom enredo. Envenenado, o texto come as próprias linhas. A carta se autodestrói. Paulatinamente. E numa página que se esvazia, o trajeto rapidamente desaparece e assopra ao esquecimento direitas, esquerdas, ruas, amálgamas, semáforos, ladeiras, escarpas e um sobrado amarelo que permanece intacto.
Lucas Galati
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Muito bonita a carta e a passagem "o texto come as próprias linhas" achei de uma poesia sem igual.